quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

MALBA TAHAN – A divisão simples, a divisão certa e a divisão perfeita (conto de O Homem que Calculava)

Malba Tahan é heterônimo do matemático, educador e escritor brasileiro Júlio César de Mello e Souza (1895 - 1974), autor de mais de 15 livros sobre os costumes e lendas do povo árabe. Sua obra mais conhecida, "O Homem que Calculava", já um clássico das nossas letras, narra as proezas matemáticas do calculista persa Beremiz Samir – conhecido como "O Homem que Calculava" –, as quais se tornaram lendárias na antiga Arábia, encantando reis, poetas, xeiques e sábios. Sem perder o clima mágico de aventura e romance da terra das mil e uma noites, Malba Tahan ensina matemática e deslumbra o leitor por meio da ficção.

Muito embora o episódio mais famoso do livro seja o que narra "O Problema dos 35 Camelos", meu conto favorito dessa obra-prima é o de número 4: o da divisão dos pães com o xeique que estava prestes a morrer de fome. Isso porque, apesar de o problema dos camelos ser bastante intrigante, ele nada mais é do que uma simples curiosidade numérica. O conto da divisão dos pães, além de apresentar uma curiosidade aritmética igualmente interessante, relaciona a matemática com uma questão moral inusitada e com a noção que temos de justiça.

É ler para crer!

A DIVISÃO SIMPLES, A DIVISÃO CERTA E A DIVISÃO PERFEITA (episódio de O Homem que Calculava) – Malba Tahan

Três dias depois [da última aventura], aproximávamo-nos das ruínas de pequena aldeia  denominada Sippar  quando encontramos, caído na estrada, um pobre viajante, roto e ferido.

Socorremos o infeliz e dele próprio ouvimos o relato de sua aventura.

Chamava-se Salém Nasair, e era um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Ao regressar, poucos dias antes, de Báçora, com grande caravana, pela estrada de el-Hilleh, fora atacado por uma chusma de nômades persas do deserto. A caravana foi saqueada e quase todos os seus componentes pereceram nas mãos dos beduínos. Ele  o chefe  conseguira, milagrosamente, escapar, oculto na areia, entre os cadáveres dos seus escravos.

E, ao concluir a narrativa de sua desgraça, perguntou-nos com voz angustiosa:

 Trazeis, por acaso, ó muçulmanos, alguma coisa que se possa comer? Estou quase, quase a morrer de fome!

 Tenho, de resto, três pães  respondi.

 Trago ainda cinco! – afirmou, a meu lado, o Homem que Calculava.

 Pois bem  sugeriu o xeique , juntemos esses pães e façamos uma sociedade única. Quando chegar a Bagdá prometo pagar com 8 moedas de ouro o pão que comer!

Assim fizemos. No dia seguinte, ao cair da tarde, entramos na célebre cidade de Bagdá, a pérola do Oriente.

Ao atravessarmos vistosa praça, demos de rosto com aparatoso cortejo. Na frente marchava, em garboso alazão, o poderoso Ibrahim Maluf, um dos vizires.

O vizir, ao avistar o xeique Salém Nasair em nossa companhia, chamou-o e, fazendo parar a sua poderosa guarda, perguntou-lhe:

 Que te aconteceu, ó meu amigo? Por que te vejo chegar a Bagdá, roto e maltrapilho, em companhia de dois homens que não conheço?

O desventurado xeique narrou, minuciosamente, ao poderoso ministro, tudo o que lhe ocorrera em caminho, fazendo a nosso respeito os maiores elogios.

 Paga sem perda de tempo a esses dois forasteiros  ordenou-lhe o grão-vizir.

E, tirando de sua bolsa 8 moedas de ouro, entregou-as a Salém Nasair, acrescentando:

 Quero levar-te agora mesmo ao palácio, pois o Comendador dos Crentes deseja, com certeza, ser informado da nova afronta que os bandidos e beduínos praticaram, matando nossos amigos e saqueando caravanas dentro de nossas fronteiras.

O rico Salém Nasair disse-nos, então:

 Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo agradecer-vos o grande auxílio que ontem me prestastes. E para cumprir a palavra dada, vou pagar já o pão que generosamente me destes!

E, dirigindo-se ao Homem que Calculava, disse-lhe:

 Vais receber, pelos 5 pães, 5 moedas!

E voltando-se para mim, ajuntou:

 E tu, ó Bagdali, pelos 3 pães, vais receber 3 moedas!

Com grande surpresa, o calculista objetou respeitoso:

 Perdão, ó Xeique. A divisão, feita desse modo, pode ser muito simples, mas não é matematicamente certa! Se eu dei 5 pães devo receber 7 moedas; o meu companheiro bagdali, que deu 3 pães, deve receber apenas uma moeda.

 Pelo nome de Maomé!  interveio o vizir Ibrahim, interessado vivamente pelo caso.

 Como justificar, ó Estrangeiro, tão disparatada forma de pagar 8 pães com 8 moedas? Se contribuíste com 5 pães, por que exiges 7 moedas? Se o teu amigo contribuiu com 3 pães, por que afirmas que ele deve receber uma única moeda?

O Homem que Calculava aproximou-se do prestigioso ministro e assim falou:

 Vou provar-vos, ó Vizir, que a divisão das 8 moedas, pela forma por mim proposta, é matematicamente certa. Quando, durante a viagem, tínhamos fome, eu tirava um pão da caixa em que estavam guardados e repartia-o em três pedaços, comendo, cada um de nós, um desses pedaços. Se eu dei 5 pães, dei, é claro, 15 pedaços; se o meu companheiro deu 3 pães, contribuiu com 9 pedaços. Houve, assim, um total de 24 pedaços, cabendo, portanto, 8 pedaços para cada um. Dos 15 pedaços que dei, comi 8; dei, na realidade, 7; o meu companheiro deu, como disse, 9 pedaços e comeu, também, 8; logo, deu apenas 1. Os 7 pedaços que eu dei e que o bagdali forneceu formaram os 8 que couberam ao xeique Salém Nasair. Logo, é justo que eu receba 7 moedas, e o meu companheiro, apenas uma.

O grão-vizir, depois de fazer os maiores elogios ao Homem que Calculava, ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois a mim me cabia, por direito, apenas uma. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração apresentada pelo matemático.

 Esta divisão  retorquiu o calculista  de sete moedas para mim e uma para meu amigo, conforme provei, é matematicamente certa, mas não é perfeita aos olhos de Deus!

E tomando as moedas na mão dividiu-as em duas partes iguais. Deu-me uma dessas partes (4 moedas), guardando, para si, as quatro restantes.

 Esse homem é extraordinário  declarou o vizir.  Não aceitou a divisão proposta de 8 dinares em duas parcelas de 5 e 3, em que era favorecido; demonstrou ter direito a 7 e que seu companheiro só devia receber um dinar, acabando por dividir as 8 moedas em 2 parcelas iguais, que repartiu, finalmente, com o amigo.

E acrescentou com entusiasmo:

 Mac Allah! Esse jovem, além de parecer-me um sábio e habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o companheiro. Tomo-o, hoje mesmo, para meu secretário!

 Poderoso Vizir  tornou o Homem que Calculava , vejo que acabais de fazer com 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer-vos, sou forçado a empregar 64 palavras nas quais figuram nada menos de 286 letras. O dobro, precisamente! Que Alá vos abençoe e vos proteja!

Com tais palavras o Homem que Calculava deixou a todos nós maravilhados com sua argúcia e invejável talento. A sua capacidade de calculista ia ao extremo de contar as palavras e as letras de uma frase que acabara de ouvir.
Adquira o livro!

Edição simples
Edição encadernada de luxo (capa dura)

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