Malba Tahan é heterônimo do matemático, educador e escritor brasileiro Júlio César de Mello e Souza (1895 - 1974), autor de mais de 15 livros sobre os costumes e lendas do povo árabe. Sua obra mais conhecida, "O Homem que Calculava", já um clássico das nossas letras, narra as proezas matemáticas do calculista persa Beremiz Samir – conhecido como "O Homem que Calculava" –, as quais se tornaram lendárias na antiga Arábia, encantando reis, poetas, xeiques e sábios. Sem perder o clima mágico de aventura e romance da terra das mil e uma noites, Malba Tahan ensina matemática e deslumbra o leitor por meio da ficção.
Muito embora o episódio mais famoso do livro seja o que narra "O Problema dos 35 Camelos", meu conto favorito dessa obra-prima é o de número 4: o da divisão dos pães com o xeique que estava prestes a morrer de fome. Isso porque, apesar de o problema dos camelos ser bastante intrigante, ele nada mais é do que uma simples curiosidade numérica. O conto da divisão dos pães, além de apresentar uma curiosidade aritmética igualmente interessante, relaciona a matemática com uma questão moral inusitada e com a noção que temos de justiça.
A DIVISÃO SIMPLES, A
DIVISÃO CERTA E A DIVISÃO PERFEITA (episódio de O Homem que Calculava) – Malba Tahan
Três dias depois [da última aventura], aproximávamo-nos das
ruínas de pequena aldeia – denominada Sippar – quando encontramos, caído na
estrada, um pobre viajante, roto e ferido.
Socorremos o infeliz e dele próprio ouvimos o relato de sua
aventura.
Chamava-se Salém Nasair, e era um dos mais ricos mercadores
de Bagdá. Ao regressar, poucos dias antes, de Báçora, com grande caravana, pela
estrada de el-Hilleh, fora atacado por uma chusma de nômades persas do deserto.
A caravana foi saqueada e quase todos os seus componentes pereceram nas mãos
dos beduínos. Ele – o chefe – conseguira, milagrosamente, escapar, oculto na
areia, entre os cadáveres dos seus escravos.
E, ao concluir a narrativa de sua desgraça, perguntou-nos com
voz angustiosa:
– Trazeis, por acaso, ó muçulmanos, alguma coisa que se possa
comer? Estou quase, quase a morrer de fome!
– Tenho, de resto, três pães – respondi.
– Trago ainda cinco! – afirmou, a meu lado, o Homem que
Calculava.
– Pois bem – sugeriu o xeique –, juntemos esses pães e façamos
uma sociedade única. Quando chegar a Bagdá prometo pagar com 8 moedas de ouro o
pão que comer!
Assim fizemos. No dia seguinte, ao cair da tarde, entramos na
célebre cidade de Bagdá, a pérola do Oriente.
Ao atravessarmos vistosa praça, demos de rosto com aparatoso
cortejo. Na frente marchava, em garboso alazão, o poderoso Ibrahim Maluf, um
dos vizires.
O vizir, ao avistar o xeique Salém Nasair em nossa companhia,
chamou-o e, fazendo parar a sua poderosa guarda, perguntou-lhe:
– Que te aconteceu, ó meu amigo? Por que te vejo chegar a
Bagdá, roto e maltrapilho, em companhia de dois homens que não conheço?
O desventurado xeique narrou, minuciosamente, ao poderoso
ministro, tudo o que lhe ocorrera em caminho, fazendo a nosso respeito os
maiores elogios.
– Paga sem perda de tempo a esses dois forasteiros – ordenou-lhe o grão-vizir.
E, tirando de sua bolsa 8 moedas de ouro, entregou-as a Salém
Nasair, acrescentando:
– Quero levar-te agora mesmo ao palácio, pois o Comendador
dos Crentes deseja, com certeza, ser informado da nova afronta que os bandidos
e beduínos praticaram, matando nossos amigos e saqueando caravanas dentro de
nossas fronteiras.
O rico Salém Nasair disse-nos, então:
– Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo
agradecer-vos o grande auxílio que ontem me prestastes. E para cumprir a
palavra dada, vou pagar já o pão que generosamente me destes!
E, dirigindo-se ao Homem que Calculava, disse-lhe:
– Vais receber, pelos 5 pães, 5 moedas!
E voltando-se para mim, ajuntou:
– E tu, ó Bagdali, pelos 3 pães, vais receber 3 moedas!
Com grande surpresa, o calculista objetou respeitoso:
– Perdão, ó Xeique. A divisão, feita desse modo, pode ser
muito simples, mas não é matematicamente certa! Se eu dei 5 pães devo receber 7
moedas; o meu companheiro bagdali, que deu 3 pães, deve receber apenas uma
moeda.
– Pelo nome de Maomé! – interveio o vizir Ibrahim,
interessado vivamente pelo caso.
– Como justificar, ó Estrangeiro, tão
disparatada forma de pagar 8 pães com 8 moedas? Se contribuíste com 5 pães, por
que exiges 7 moedas? Se o teu amigo contribuiu com 3 pães, por que afirmas que
ele deve receber uma única moeda?
O Homem que Calculava aproximou-se do prestigioso ministro e
assim falou:
– Vou provar-vos, ó Vizir, que a divisão das 8 moedas, pela
forma por mim proposta, é matematicamente certa. Quando, durante a viagem,
tínhamos fome, eu tirava um pão da caixa em que estavam guardados e repartia-o
em três pedaços, comendo, cada um de nós, um desses pedaços. Se eu dei 5 pães,
dei, é claro, 15 pedaços; se o meu companheiro deu 3 pães, contribuiu com 9
pedaços. Houve, assim, um total de 24 pedaços, cabendo, portanto, 8 pedaços
para cada um. Dos 15 pedaços que dei, comi 8; dei, na realidade, 7; o meu
companheiro deu, como disse, 9 pedaços e comeu, também, 8; logo, deu apenas 1.
Os 7 pedaços que eu dei e que o bagdali forneceu formaram os 8 que couberam ao
xeique Salém Nasair. Logo, é justo que eu receba 7 moedas, e o meu companheiro,
apenas uma.
O grão-vizir, depois de fazer os maiores elogios ao Homem que
Calculava, ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois a mim me cabia,
por direito, apenas uma. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração
apresentada pelo matemático.
– Esta divisão – retorquiu o calculista – de sete moedas para
mim e uma para meu amigo, conforme provei, é matematicamente certa, mas não é
perfeita aos olhos de Deus!
E tomando as moedas na mão dividiu-as em duas partes iguais.
Deu-me uma dessas partes (4 moedas), guardando, para si, as quatro restantes.
– Esse homem é extraordinário – declarou o vizir. – Não aceitou
a divisão proposta de 8 dinares em duas parcelas de 5 e 3, em que era
favorecido; demonstrou ter direito a 7 e que seu companheiro só devia receber
um dinar, acabando por dividir as 8 moedas em 2 parcelas iguais, que repartiu,
finalmente, com o amigo.
E acrescentou com entusiasmo:
– Mac Allah! Esse jovem, além de parecer-me um sábio e
habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o
companheiro. Tomo-o, hoje mesmo, para meu secretário!
– Poderoso Vizir – tornou o Homem que Calculava –, vejo que
acabais de fazer com 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio
que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer-vos, sou forçado a empregar 64
palavras nas quais figuram nada menos de 286 letras. O dobro, precisamente! Que
Alá vos abençoe e vos proteja!
Com tais palavras o Homem que Calculava deixou a todos nós
maravilhados com sua argúcia e invejável talento. A sua capacidade de
calculista ia ao extremo de contar as palavras e as letras de uma frase que
acabara de ouvir.

Edição simples
Edição encadernada de luxo (capa dura)
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