Se eu tivesse que dar um palpite sobre o que há de mais importante para a humanidade como um todo e para cada indivíduo em particular, eu provavelmente diria que é a comunicação. A comunicação, que parece surgir no nosso comportamento de forma tão espontânea, constitui, na verdade, um dos desafios mais relevantes da nossa existência. Embora manter conversas casuais com amigos não seja problema para a maior parte das pessoas, transmitir ideias e noções fora do lugar-comum para desconhecidos ou para toda uma coletividade não é algo assim tão fácil, e a experiência mostra que são pouquíssimos os indivíduos capazes de articular assuntos complexos por meio de uma comunicação realmente clara e eficaz.
Desenvolver uma linguagem eficiente para determinados assuntos já é, por si só, tarefa difícil. A dificuldade cresce exponencialmente à medida que mais e mais das partes que deveriam utilizar essa linguagem ficam de má-vontade e não permitem a si mesmas desenvolver novas habilidades nessa língua ou a pelo menos conhecer o que já foi desenvolvido (tente contar uma novidade qualquer para uma pessoa desinteressada e você vai sentir na pele o que eu estou dizendo: a comunicação se torna insustentável, e o diálogo, impossível).
Vou explicar o problema por meio de um exemplo real que eu vivencio desde a infância.
Desde que eu me entendo por gente, eu ouço com frequência a ironia de pessoas que me perguntam “por que facilitar se eu posso complicar, não é, Gustavo?” quando me veem trabalhando em algum tema espinhoso ou em algum assunto abstrato que parece não ter nenhuma aplicação prática imediata. A regra do menor esforço, para as pessoas que me fazem essa pergunta (da qual elas nunca querem ouvir a resposta), é: “vou me acomodar a resolver só os problemas cuja resposta eu já conheça, e dane-se o resto. Eu sou bom quando eu dou a resposta certa, não quando eu persisto em desvendar um assunto nunca antes explorado”. E é aí que reside o equívoco. Não existe nada mais desastroso do que esse pensamento mesquinho eivado de preguiça, medo e inconsciente vaidade.
No ramo da matemática, por exemplo, o leigo talvez pense que utilizar símbolos cada vez mais estranhos e resolver problemas cada vez mais difíceis seja mero capricho do matemático, uma brincadeira desnecessariamente complicada que não serve para nada (“onde é que eu vou usar isso na minha vida?”, sempre pergunta o aluno mal instruído). A verdade é que, ao “complicar” certos assuntos por meio de notações algébricas e descobrir certas propriedades abstratas, os matemáticos facilitam de uma maneira inacreditável a resolução de problemas práticos do mundo real: problemas visíveis, urgentes e que, até então, ninguém sabia sequer como começar a resolver. A utilização dos numerais indo-arábicos e do sistema decimal que usamos hoje ("1", "2", "3", ..., "10", "11", etc.), uma notação específica para o zero (“0”), a utilização do símbolo “x” para indicar um valor desconhecido e a definição formal do que são números negativos e fracionários são exemplos de práticas utilíssimas que, se hoje parecem triviais, historicamente são conquistas que levaram séculos e mais séculos de estudos e pesquisas para se firmar. Tente resolver uma equação como “x + 5 = 3” sem usar essas notações para você entender do que eu estou falando. Não dá pra saber nem por onde começar! Se uma equação simples como essa já fica complicada, imagine como seria para representarmos os problemas que surgem para a transmissão de dados pela internet, para a construção de um automóvel ou para o funcionamento do aparelho que você está usando neste exato momento para ler este texto. (Pense nisso na próxima vez que você perguntar “por que eles ensinam a fórmula de Bháskara nas escolas se eu nunca vou usar isso na minha vida?”).
Mas a matemática é só um exemplo de uma linguagem mal-vista pelos leigos (talvez a mais injustamente odiada pelas pessoas em geral, mas, ainda assim, apenas um exemplo). O que eu quero falar aqui é sobre algo mais próximo do homem e da mulher do dia-a-dia, algo que parece muito mais simples do que a matemática, mas que, no fundo, não é de menor importância: a própria linguagem falada que utilizamos no cotidiano para nos relacionarmos com nossos semelhantes e para pensarmos sobre tudo aquilo que acontece conosco, na nossa intimidade (pois a comunicação não é feita só de pessoa para pessoa, mas também é algo que acontece do indivíduo para consigo mesmo na tentativa de se auto-compreender e de se auto-determinar).
Muita gente fica reclamando coisas do tipo: “por que Shakespeare escrevia daquele jeito? Será que o Guimarães Rosa precisava mesmo usar aquelas palavras complicadas? Não dava para dizer a mesma coisa com palavras simples? O que esses lunáticos da arte moderna estão querendo dizer com essas performances malucas, se ninguém entende nada da obra deles?”. As pessoas que fazem essas perguntas são as mesmas que, anos depois, acham estranho que a vida esteja perdendo o sentido, que elas sintam uma angústia inexplicável dominando-lhes a rotina e que sofram de problemas emocionais que elas nem conseguem explicar, muitas vezes padecendo de fortes dores na alma que sumiriam num piscar de olhos se elas conseguissem utilizar palavras para descrevê-las (pois identificar e explicar o problema muitas vezes é tudo de que precisamos para resolvê-lo).
Se a linguagem simples do dia-a-dia já causa mal-entendidos entre as pessoas, deixar de desenvolver novas formas de expressão é um caminho certo para a ruína pessoal. E desenvolver novas formas de expressão é o que fez Shakespeare, Guimarães Rosa, Machado de Assis, os modernistas, os pós-modernistas e é o que fazem todos os bons escritores e artistas de ontem e de hoje (pintores, cineastas, atores, músicos, cartunistas, etc.): eles estão encontrando novos meios de expressar a vida em todas as suas nuances, considerando as emoções mais sutis, os pensamentos mais elevados, os sentimentos mais profundos e as paixões mais arrebatadores. Muitas vezes uma obra “difícil” é uma porta que se abre para que possamos compreender coisas novas, aprender novas maneiras de nos comunicar e de interpretar o mundo que nos cerca. No momento da leitura isso talvez pareça bobagem, mas quando um problema real surgir no nosso caminho (um desencanto amoroso, uma briga familiar, um distúrbio psicológico, etc.), teremos armas mais potentes para lidar com ele. Não fazer isso significa ficar prisioneiro das circunstâncias, vítima das casualidades, escravo de um destino adverso traçado pelos mais poderosos e pela indiferente aleatoriedade.
Assim como, sem a álgebra “complicada” tão discriminada pelos estudantes, nós não teríamos toda a tecnologia que melhora a nossa qualidade de vida, sem um vocabulário bem-desenvolvido, uma gramática funcional e as inventividades mirabolantes dos nossos artistas mais geniais nós talvez não seríamos capazes de conquistar uma felicidade duradoura, uma alegria convicta, um auto-consciente prazer de viver.
Se não tivermos palavras para expressar nossa dor, a dor nunca vai desaparecer, e o tempo fará com que se torne dor aquilo que até então parecia ser só prazer.
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