quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

SOBRE FORMALISMO E INTUIÇÃO NA MATEMÁTICA

Talvez pelo fato de a matemática ser a disciplina da lógica e do rigor por excelência, muita gente cria a impressão errônea de que nela não há espaço para a intuição ou para a liberdade. Não apenas entre os leigos, mas também entre os matemáticos experientes existem aqueles que tomam por pressuposto que fazer matemática é apenas seguir o encadeamento inflexível de procedimentos rígidos, numa linha dedutiva que não admite caminhos alternativos, sendo que qualquer informalidade na lógica do aluno, por mais que com potencial para o brilhantismo, deve ser corrigida e censurada de imediato. Com a devida licença dos meus amigos formalistas, eu, particularmente, considero essa a pior concepção possível sobre o que a matemática é em sua essência, e observo que a abordagem que decorre desse pensamento engessado é das mais inférteis (para não dizer frustrantes e aborrecedoras).

É claro que, principalmente após a necessária “onda formalizadora” do início do século XX, que encontra em David Hilbert seu mais acentuado expoente, a matemática pura passou cada vez mais a ser compreendida – e de maneira acertada – como uma disciplina dedutiva que encontra no rigor da lógica a certeza de sua validade. Assim, impossível negar que sem rigor não há matemática, e não é exagero nenhum afirmar que o rigor lógico-formal seja a espinha dorsal que a sustenta, além de constituir a característica mais saliente que a distingue das demais ciências. Com efeito, a matemática não é uma ciência experimental cujas teorias são acolhidas ou não com base em observações empíricas (como a física ou a química, por exemplo). A matemática – mais notadamente a geometria, esse tronco sólido do qual provêm tantos ramos frutíferos – fundamenta-se em uma série de proposições básicas que são aceitas como verdadeiras a priori, sem prova, e a partir das quais são desenvolvidos sistemas cada vez mais intricados de relações que, com o amparo dos princípios da lógica, são demonstradas como verdadeiras sem margem para dúvidas. Essas proposições básicas aceitas sem prova são os chamados “axiomas”, que, grosso modo, são enunciados simples que postulam verdades mínimas, facilmente compreensíveis, tais como “por dois pontos é possível traçar uma, e apenas uma reta que os contenha” ou “dado um número X qualquer, X é igual a ele mesmo (ou seja, X = X)”. Com exceção dos axiomas, tudo o que é enunciado na matemática somente será aceito, incorporado em seu arcabouço teórico e só poderá ser utilizado para a obtenção de novos resultados se for comprovado de modo inequívoco e irrefutável (sob risco de um resultado errado, por minúsculo que seja, abalar toda a estrutura dos novos ramos que dele provierem ou que com ele mantiverem relações de dependência, o que poderia fazer desmoronar construções teóricas oriundas de décadas ou até mesmo séculos de trabalhos de diversos pesquisadores e colocar em xeque a sustentabilidade de todas as tecnologias neles baseadas)[1].

Nesse contexto de justificada intransigência intelectual, a impressão causada é a de que realmente não existe espaço para a intuição ou para a inovação despojada, que são características aparentemente tão opostas à seriedade que se deve esperar de assuntos dessa natureza. Contudo, a prática da matemática revela, mais e mais à medida que nela nos aprofundamos, que são justamente a intuição e a inovação informalmente criativa que promovem os maiores avanços. Aliás, com certa experiência, há momentos nada raros em que o exercício da matemática vai se assemelhando mais a uma arte criativa do que a uma ciência austera.

Nesse estranho processo de criatividade que impulsiona o desenvolvimento da matemática, a intuição exerce papel de grande importância, uma importância similar àquela da inspiração que impele o artista a realizar sua obra. Claro que nem a inspiração nem a intuição são, por si só, suficientes para concretizar qualquer trabalho de valor (não existe inspiração sem transpiração!), mas é notável que elas funcionam como um arranque primário valioso, ou pelo menos como uma iluminação incidental auxiliadora, no labor do matemático e do artista. Há casos, inclusive, em que a compreensão de alguma verdade matemática atinge o estudante ou pesquisador como um clarão repentino, e só a partir de então esse estudante ou pesquisador passa a pensar em maneiras formais de efetivar a demonstração de seu teorema a fim de apresentá-lo a outras pessoas[2]. É por isso que gosto de chamar as demonstrações matemáticas de “epifanias pormenorizadas”: “epifanias” porque são compreensões de verdades elevadas; “pormenorizadas” porque, ao contrário das epifanias tradicionais, elas dependem de comprovações em seus mínimos detalhes.

Nesse ponto, gosto muito de citar Poincaré quando ele diz que “pode surpreender o fato de eu invocar a sensibilidade quando se trata de demonstrações matemáticas. [Mas fazer diferente] seria esquecer o sentido da beleza matemática, da harmonia dos números e das formas, da eloquência geométrica. Trata-se de um verdadeiro senso estético que todos os matemáticos conhecem”[3].

Ora, apesar das tão necessárias abstrações e formalidades sobre as quais discorri no começo deste texto, devemos manter em mente que a matemática é algo que foi criado e desenvolvido para explicar o mundo real (ou pelo menos para permitir que sobre ele nos comuniquemos com certa objetividade), de modo que o bom matemático não pode perder de vista essa relação primordial entre matemática e realidade, até mesmo quando está trabalhando sobre problemas que, a princípio, em nada se relacionam com algo fisicamente palpável (o que é frequente nos estudos mais avançados).

É com base nessas considerações que afirmo, com convicção, que a intuição não deve ser eliminada, mas sim refinada, no intelecto do aprendiz.

Para clarificar o que estou dizendo, partirei de um exemplo prático muito simples: todo mundo deve se lembrar, embora talvez não conheça a propriedade pelo nome, que a multiplicação é uma operação comutativa. Isso quer dizer que na multiplicação “a ordem dos fatores não altera o produto”, ou seja, que 3 x 2 = 2 x 3, que 4 x 5 = 5 x 4, que 7 x 1 = 1 x 7 e, mais genericamente, que a x b = b x a para “a” e “b” números quaisquer. Pergunte a qualquer pessoa o porquê disso e ela lhe dirá: “mas é tão óbvio!”. E eu afirmo: dizemos que é óbvio porque já nos acostumamos, desde a infância, com essa verdade, mas eu duvido que existam muitas pessoas que realmente enxerguem a “obviedade” dessa propriedade. Ora, se fizermos vários exemplos de multiplicações do jeito que nos ensinaram a fazer na escola, veremos que, realmente, 5 x 4 = 4 x 5, pois 5 x 4 é 20 e 4 x 5 também é 20, e que 7 x 9 = 9 x 7, pois 7 x 9 é 63 e 9 x 7 também é 63. Contudo, essa análise “caso a caso” não quer dizer nada, primeiro porque existe uma infinidade de números e não poderíamos cotejá-los todos (você conseguiria garantir, sem usar uma calculadora, que pi vezes a raiz quadrada de dois é igual ao valor de raiz quadrada de dois vezes pi?), segundo porque, ainda que fosse possível verificar “na força bruta” todos os casos possíveis, isso nada nos diria sobre o motivo de a propriedade ser verdadeira, de modo que essa forma de raciocínio intuitivo, apesar de relativamente útil em algumas situações, é ineficiente e não deve ser encorajada com grande ênfase.

Por outro lado, existe uma maneira muita mais interessante de visualizar a questão.

Pense em várias bolinhas distribuídas em linhas e colunas. Digamos que haja 5 colunas com 3 bolinhas cada, como na figura abaixo à esquerda (ou seja, temos 5 colunas e 3 linhas de bolinhas). É fácil perceber que o total de bolinhas é igual à quantidade de colunas multiplicada pela quantidade de linhas, ou seja, 5 x 3. Mas se virarmos a figura ou até mesmo se a olharmos por um ângulo diferente, inclinando a cabeça, a quantidade de bolinhas não se alterará, e no entanto teremos 3 colunas e 5 linhas, de modo que 3 x 5 tem que dar o mesmo resultado que 5 x 3. Não importa como olhemos para elas ou em que posição elas estejam dispostas, as bolinhas estão lá numa quantidade fixa! E o mesmo raciocínio pode ser aplicado quando existirem duas linhas e três colunas, vinte linhas e nove colunas, quinhentas linhas e oitocentos e cinquenta e sete mil colunas... enfim, para todas as disposições de bolinhas com “a” linhas e “b” colunas, a quantidade total de bolinhas será "a x b" ou "b x a", o que dá no mesmo. Essa analogia entre a aritmética (contas) e a geometria (formas e desenhos), viabilizando uma percepção global integrada, é o que chamamos de "interpretação geométrica" do problema (consulte as notas extras no fim do artigo para encontrar um exemplo mais avançado e bem mais inusitado de interpretação geométrica[4]).
A interpretação geométrica conforme descrita acima não é, nem de longe, uma comprovação formal válida e irrefutável de que a x b = b x a para todos os números reais “a” e “b”, mas é uma boa maneira de irrigar a imaginação para motivá-la a perceber as coisas com maior clareza e para induzi-la a reconhecer relações outras que, sem esse estímulo, talvez passassem despercebidas. Aqui, sim, temos um caso de pensamento intuitivo extremamente proveitoso, capaz de facilitar em muito a aceitação da propriedade e de abrir portas um tanto seguras para a imaginação matemática. E similares nutrientes para a imaginação podem  e devem! – ser utilizados para substituir aquela intuição ainda rudimentar por percepções analógicas mais úteis e sofisticadas, fazendo com que formalismo e intuição não anulem um ao outro, antes se complementem, na construção do saber matemático.

A respeito da potência da imaginação na matemática, é pertinente mencionar que Michael Guillen, em seu livro “Pontes para o Infinito”, chega até mesmo a sugerir que a matemática seja a “ciência da imaginação” e que a imaginação funciona como que um “sexto sentido” para nos permitir conhecer a realidade, um "sentido extra" que oferece possibilidades a mais para analisarmos tudo aquilo que existe ao nosso redor.  De acordo com o autor, “ao contrário dos demais cientistas, que observam a natureza por intermédio de todos os cinco sentidos, os matemáticos usam quase que exclusivamente o sentido da imaginação. Isto é, os matemáticos estão tão familiarizados com o sexto sentido como os músicos estão com os sons, os gastrônomos com os paladares e os aromas e os fotógrafos e cineastas com a vista. Esta comparação sugere ainda que os matemáticos são artistas da imaginação, tal como os músicos, os gastrônomos, os fotógrafos e os cineastas nos seus respectivos domínios sensoriais. Através das suas singulares criações imaginativas, os matemáticos dão-nos informações da realidade”.

Assim, o pensamento de um genuíno investigador matemático não deve se limitar às formalidades com as quais no futuro ele virá a provar os resultados de suas elucubrações, nem mesmo pelos símbolos e notações comumente utilizadas para denotar os entes abstratos que são os objetos de suas pesquisas. Fórmulas, símbolos, critérios de escrita: tudo isso deve ser encarado como ferramentas de auxílio, parâmetros de organização e convenções mínimas para a comunicação entre os pesquisadores, nunca como fins encerrados em si mesmos.

Não me alongarei mais passando a uma análise dos incontáveis casos de declarações de matemáticos descrevendo a importância da intuição em seus trabalhos (a literatura é farta de exemplos!). Registrarei, apenas e para finalizar, a seguinte declaração de Albert Einstein, com a qual o leitor de mente investigativa certamente irá se familiarizar:

“As palavras e a linguagem, escritas ou faladas, não parecem ter o menor papel no mecanismo do meu pensamento. As entidades psíquicas que servem de elementos para o pensamento são certos sinais ou imagens mais ou menos claras que podem se reproduzir e se combinar à vontade”.

O que ao mesmo tempo confronta e reforça aquela velha máxima, atribuída a 
Wittgenstein, de que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo".



NOTAS EXTRAS:

[1] Além do que foi dito a respeito do rigor formal, vale destacar que a matemática trata das questões puramente abstratas que envolvem seus objetos de estudo (os quais, por sua vez, também são abstrações, e não entes do mundo material). Na concepção hoje predominante, a matemática é a disciplina que extrai conclusões logicamente implicadas em qualquer conjunto de axiomas ou postulados (ainda que esses axiomas não guardem relação com qualquer objeto do mundo real). De fato, reconhece-se no pensamento contemporâneo que a validade de uma inferência matemática não depende em nada de qualquer significado especial que se possa associar aos termos e expressões contidos nesses postulados. Ernest Nagel e James R. Newman explicam que “a matemática foi reconhecida como sendo muito mais abstrata e formal do que se supunha tradicionalmente: mais abstrata porque enunciados matemáticos podem ser estabelecidos em princípio sobre o que quer que seja, mais do que sobre algum conjunto de objetos ou traços de objetos inerentemente circunscrito; e mais formalmente porque a validade das demonstrações matemáticas se estriba na estrutura de enunciados, mais do que na natureza de um tema particular. Os postulados de qualquer ramo da matemática demonstrativa não se referem inerentemente a espaço, quantidades, maçãs, ângulos ou orçamentos; e qualquer significado especial que pode estar associado com os termos nos postulados não desempenha papel essencial no processo de derivação de teoremas. O problema com o qual o matemático puro se defronta (diferentemente do cientista que emprega a matemática ao investigar um assunto em especial) não é se os postulados por ele assumidos ou as conclusões que deles deduz são verdadeiros, mas se as alegadas conclusões são de fato consequências lógicas necessárias das pressuposições iniciais”. É nesse sentido que caminha a afirmação (menos irônica do que parece) de Bertrand Russell: “a matemática pura é o assunto em que não sabemos acerca do que estamos falando e se o que estamos dizendo é verdadeiro”.


[2] Relato de Carl Friedrich Gauss: “Finalmente, há dois dias, consegui [demonstrar um teorema]. Não como resultado de meus penosos esforços, mas graças a Deus. O enigma foi resolvido num raio súbito. Não sei dizer qual foi a natureza do fio condutor que ligou o que eu já sabia com o que tornou possível o meu sucesso”.

[3] Existe uma beleza intrínseca na matemática que só se revela àqueles que adentram com ânimo e coragem em suas profundezas mais recônditas, elevando o espírito a altitudes até então inimaginadas. Ainda assim, o estudo da matemática só proporcionará seu verdadeiro esplendor se aliado a outras áreas do saber humano, em especial à filosofia. Não é demais dizer que matemática e filosofia são como que duas gigantescas montanhas separadas por um vale. O vale as separa, mas só das alturas de uma é possível contemplar toda a majestade da outra.

[4] Segue um exemplo maravilhosamente belo e auto-explicativo da interpretação geométrica para a soma de uma série geométrica de razão (r) entre 0 e 1 (0 < r < 1) cujo primeiro termo é um certo valor "a".

LEITURAS RECOMENDADAS:

  • Jacques Hadamard – Psicologia da invenção na matemática
  • Nílson José Machado  Matemática e realidade: análise dos pressupostos filosóficos que fundamentam o ensino da matemática
  • Nílson José Machado  Matemática e língua materna: análise de uma impregnação mútua
  • Jairo José da Silva  Filosofias da matemática
  • Ernest Nagel; James R. Newman  A prova de Gödel
  • Simon Singh  O último teorema de Fermat
  • G. H. hardy  Em defesa de um matemático
  • Terence Tao  Cheating strategically (vídeo disponível neste link)
  • Ted Chiang – História da sua vida e outros contos

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