terça-feira, 1 de janeiro de 2019

ENTRETENIMENTO, INFORMAÇÃO E FORMAÇÃO (na literatura e na matemática)

Existem muitos tipos de literatura, muitos tipos de matemática e muitas formas de se aproximar de uma e de outra. No campo da literatura, o filósofo A. D. Sertillanges, autor de "A Vida Intelectual", classifica as leituras em três espécies principais: segundo ele, existe a leitura de entretenimento, que é aquela que fazemos apenas para passar o tempo, só para nos distrair do cotidiano (best-sellers fugazes, romances água-com-açúcar, ficções sem grandes inovações); existe a leitura de informação, que é aquela que nos traz algum conhecimento sobre os fatos do mundo, fornecendo relatos sobre acontecimentos relevantes do passado ou do presente (notícias, reportagens, textos históricos); e existe, ainda, a leitura de formação, que é aquela que, entretendo ou não, apresentando informações ou não, causa alguma forte transformação no leitor. Trata-se daquele tipo de obra que modifica de verdade quem a lê, que nos faz enxergar relações significativas que antes mantinham-se ocultas dos nossos olhos e que nos induz a vislumbrar perspectivas até então nunca cogitadas sobre o mundo em geral. Uma leitura de formação, como um Crime e Castigo ou um Cidades Invisíveis, por exemplo, fortalece o espírito em caráter permanente e faz com que as ideias nela contidas acompanhem o leitor pela vida toda, mesmo quando ele nem percebe que seus pensamentos e suas ações teriam sido outros se não fosse a existência daquela leitura.

O professor José Monir Nasser, realizador do programa "Expedições ao Mundo da Cultura"[1], ilustrou a distinção entre esses diferentes tipos de leitura da seguinte forma: para ele, fazer uma leitura de entretenimento é como deslizar com patins no gelo. O leitor desliza com facilidade na história. É uma coisa superficial e rápida, de modo que pouco ou quase nada do livro vai ficar retido na memória ou ter impacto sobre o futuro de quem o lê. Já uma leitura de formação, experiência mais robusta, é, na analogia do professor Monir, como uma prospecção de petróleo, de modo que se deve fazer um buraco obra adentro e dali extrair riquezas. Não se vai ler só por ler, deslizando à toa sobre a obra, mas, sim, buscar uma compreensão mais aprofundada, cavar fundo seus significados, os quais normalmente se tornam mais valiosos à medida que a escavação atinge camadas mais internas. Uma vez aberto um desses livros, algo deles permanece dentro de nós, em nossos sonhos, entranhando-se indelevelmente à nossa própria alma.

Por mais óbvio que seja, é importante observar que essas categorias de leitura não são excludentes entre si, mas complementares. Isso significa que um mesmo livro pode ser de entretenimento e de formação, sem problema algum. Com frequência, aliás, isso acontece. Uma simples "ficção barata" pode despertar no leitor reflexões elevadas, e o mais precioso clássico que uma pessoa pode encontrar para a sua formação intelectual talvez nem seja uma leitura difícil, dessas que exigem estudos diligentes e esforços descomunais, mas, sim, uma pequena obra-prima que, em poucas páginas, acende-lhe a chama sublime de alguma percepção de valor incomparável. Citando a mim mesmo como exemplo, confesso que já fui induzido a pensamentos que muito contribuíram na edificação do meu caráter por leituras despretensiosas de livros que eu devorava só por diversão. E, além disso, com o passar do tempo percebi que, havendo instrução adequada, é perfeitamente possível (e totalmente desejável) encontrar entretenimento dos mais agradáveis até mesmo naqueles livros mais pesados que a tradição nos acostumou a inserir nas listas de clássicos universais (Guimarães Rosa, Machado de Assis, Dostoiévski, Shakespeare, Camões, Poe, Cervantes, Melville, etc., etc., etc.). Claro que, como é forçoso reconhecer, existem obras que são espinhosas mesmo, de forma que pouco pode ser feito para abrandá-las (e aqui cabe relembrar certos "perrengues" pelos quais eu já passei, como quando eu fiquei um ano inteirinho tentando entender alguma coisa de Thomas Pynchon – o que no final valeu o esforço – e quando eu me massacrei para chegar à última página de certo livro do Henry James – o que, apesar de não ter sido uma experiência de todo nula, não valeu tanto a pena não).

Essa forma de organizar nosso pensamento acerca dos livros em leituras de "entretenimento", "informação" e "formação" pode, com toda a tranquilidade, ser estendida para outras áreas da cultura e do conhecimento humano. Comparativamente, no cinema podemos pensar em comédias e filmes de ação como simples entretenimento, documentários como divulgadores de informação e, digamos, Kubrick, Kurosawa, Jodorowsky, etc., como cinema de formação. O mesmo pode ser feito com relação às artes plásticas, à música, aos jogos eletrônicos[2] e – por que não? – à matemática.

Conquanto, na matemática, entretenimento, informação e formação se interpenetrem de forma mais imperceptível do que nas outras áreas (pelo menos para o meu ponto de vista), uma divisão idealizada entre "matemática de entretenimento", "matemática de informação" e "matemática de formação" também é possível e, segundo me parece, bastante útil para clarificar nossas ideias e instruir nossa metodologia de trabalho dentro dessa tão vasta área do saber.

Para as pessoas que não têm grande interesse em matemática (seja por uma aversão natural – o que é raro –, seja por não terem tido a felicidade de encontrar professores capazes de lhes construir uma base sólida na matéria – o que é muito mais provável), talvez seja estranho ouvir que possa existir uma "matemática de entretenimento", mas garanto para vocês que a diversão na matemática é algo tão natural para o aluno familiarizado com os estudos que isso nem precisaria de explicação. Isso ocorre porque a matemática, em praticamente todas as suas ramificações, funciona como que um jogo a ser desbravado, com quebra-cabeças desafiadores crescendo em dificuldade, mas também em graus de surpresa e inventividade, a cada nova etapa. E mesmo à parte desse fato, frisemos que existe a chamada "matemática recreativa", fértil em desafios interessantíssimos, que diverte crianças, jovens e adultos com brincadeiras nas quais a matemática, de maneira explícita ou não, é a fonte do prazer.

O mais famoso dos pesquisadores da matemática recreativa é Martin Gardner, cujo livro "Divertimentos Matemáticos" faz a alegria dos nerds já há quase meio século com charadas, puzzles, enigmas e problemas intrigantes diversos. Mas antes dele houve vários outros "brincalhões" na matemática, desde a antiguidade até os dias de hoje, passando por todas as épocas e civilizações (Fermat, importante matemático do século XVII, estudava por prazer e vontade própria, já que tinha carreira sólida como magistrado; Napoleão Bonaparte, o famoso líder político e estrategista militar, descobriu e demonstrou um teorema na geometria; Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, era matemático e, além de também ter inventado enigmas e charadas, chegou a publicar um livro tão instrutivo quanto engraçado no qual, por meio de uma narrativa cheia de imaginação, faz uma defesa formidável à importância do ensino da geometria euclidiana clássica). Como se não bastasse, uma simples pesquisa na internet fornecerá centenas, ou talvez milhares, de resultados com sites repletos de problemas recreativos em diversos níveis de dificuldade. Nomes proeminentes na área dos brinquedos com bases matemáticas são os de Sam Loyd (criador do "jogo do 15", além de diversos desafios no tabuleiro de xadrez), Ernö Rubik (inventor do cubo mágico) e Édouard Lucas (criador da Torre de Hanói).

Acontece que, por mais que esse universo dos enigmas, jogos e charadas seja instrutivo e hábil a fazer desenvolver o pensamento lógico-dedutivo e as habilidades de intuição, criatividade, planejamento e reconhecimento de padrões nas pessoas, em especial nas crianças, essa abordagem lúdica não é a totalidade da matemática, e raramente um problema do mundo real terá o mesmo formato de uma situação-problema inventada pelo engenho de um professor bem-intencionado. É aí que entra aquilo que eu chamo de "matemática de informação", que é aquela matemática necessária para o mundo pragmático do dia-a-dia. Trata-se daquela matemática indispensável para o comércio, na contabilidade de suas transações econômicas, para a engenharia, em seus cálculos e medições, para a computação, em suas tabelas e algoritmos, para a medicina, nos seus exames e nas dosagens dos medicamentos, para a indústria e para a agricultura, na identificação dos meios mais rentáveis de produção, para a navegação e para o transporte, na otimização de rotas e estipulação de preços, e para todas as outras atividades do cotidiano que lidam com quantidades, medidas, regras, grandezas, funções, formas e proporções.

Mas, para além da matemática estritamente recreativa e da aplicação de fórmulas pré-desenvolvidas para a resolução de problemas práticos, existe o que chamo aqui de "matemática de formação", que envolve pesquisa avançada e inovação genuína na bagagem teórica da própria ciência. É nessa matemática mais exigente e formal que se desdobram os trabalhos do matemático puro, onde, por meio do pensamento abstrato, se busca evolução no conhecimento humano, incremento nas tecnologias em curso e alargamento das capacidades de invenção e produção. Para uma matemática dessa natureza, tão indispensável ao progresso da nossa sociedade, é fundamental a existência de indivíduos à ela dedicados com exclusividade, pensando em seus problemas abstratos para antecipar problemas palpáveis que porventura apareçam em outras áreas ou mesmo para encontrar respostas para problemas reais atuais.

É na matemática de formação, etapa em que se pensa sobre o significado dos resultados obtidos com lemas, teoremas e corolários e nas inusitadas inter-relações entre eles existentes, que a matemática se revela em todo o seu esplendor, aliando-se à filosofia, numa mistura entre arte e ciência, para fornecer respostas cada vez mais consistentes para as perguntas fundamentais que surgem no nosso caminho em busca da verdade. Nessa etapa não existe grande interesse em encontrar respostas específicas para os exercícios didáticos de um curso já consolidado, mas sim em averiguar tudo aquilo que ainda pode ser acrescentado a esse curso ou descoberto sobre ele. Daí se destaca que, muito embora a resolução disciplinada e rotineira dos exercícios tradicionais de cada ramo da matemática seja indispensável para o crescimento do estudioso, as visualizações mais proveitosas das verdades matemáticas se dão em meio às tentativas de busca de resultados novos, durante investigações à procura de teoremas ainda desconhecidos, na verdadeira exploração intelectual que constitui o labor do matemático.

Sem esse tipo de investigação livre, guiada mais pela curiosidade do que pelo rigor de procedimentos lógicos, e sem ao menos a tentativa de produção de resultados profundos, isto é, de resultados capazes de interligar diferentes ideias da matemática, não se pode dizer que exista formação verdadeira nessa área. Havendo estudos dirigidos a uma tal formação, a consequência imediata no aluno com pelo menos um mínimo de inclinação matemática é evidente: aquela sensação de entendimento pleno, como quando nos deparamos com a revelação de algum segredo muito mirabolante ("uau, então é por isso que tal coisa é assim, e não de nenhuma outra forma! Agora tudo ficou claro!").

Um último comentário: a formação de uma pessoa, seja na matemática, seja na literatura, seja em seus valores morais, seja em qualquer outro âmbito da vida, é um processo contínuo e interminável. É como subir uma escada sem fim: não há um objetivo fixo a ser conquistado, um último patamar a se alcançar; apesar disso, a cada degrau galgado o caminhante soerguerá-se a alturas mais elevadas, podendo enxergar cada vez paisagens mais amplas, panoramas mais completos, horizontes mais admiráveis.


NOTAS EXTRAS:

[1] O professor José Monir Nasser (1957-2013), formado em Letras e em Economia, foi economista, consultor, palestrante, escritor, editor, pintor, crítico literário e pesquisador de religiões comparadas. Curitibano de sabedoria notável, alma nobre e capacidade prodigiosa tanto para as meditações do intelecto quanto para as urgências da vida prática, o professor Monir guiou um programa formidável no Sesi-PR discutindo algumas das maiores obras da literatura universal. Os livros que se originaram das suas palestras, todos de conteúdo estupendo, estão disponíveis de graça no site do Sesi-PR.

[2] Sobre como jogos eletrônicos podem ser considerados obras de arte hábeis a proporcionar algo mais do que mero entretenimento, recomendo demais conhecer as palestras do desenvolvedor independente Jonathan Blow, criador de Braid e The Witness. Muitas pessoas devem conhecer Jonathan Blow por sua participação (rápida, mas memorável) no documentário Indie Game – The Movie, mas a verdadeira filosofia sobre video-games criada por Blow vai muito além do que foi mostrado no filme. Recomendo, em particular, as seguintes palestras e conversas com Jonathan Blow (em inglês):

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