terça-feira, 29 de janeiro de 2019

QUANTOS HEXÁGONOS EXISTEM NA BIBLIOTECA DE BABEL? (Um rápido exercício de Combinatória)

Esta postagem nada mais é do que uma mera curiosidade sobre o conto A Biblioteca de Babel, do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Muito embora o conto seja de uma profundidade tão grande que consiga maravilhar e assombrar os pensamentos do leitor com intensidade renovada a cada releitura, acabei resistindo ao impulso de escrever uma análise detalhada da obra. Acredito, sem pesar, que fiz bem, pois as interpretações que se pode extrair da história são incontáveis, e não há nada melhor do que simplesmente ler o brilhante texto original.

Assim, neste breve artigo, procuro apenas responder à seguinte pergunta: no universo descrito por Borges, quantas galerias hexagonais existem na supostamente infinita Biblioteca de Babel?

Vejamos: o conto descreve um universo que é uma imensa biblioteca composta por salas em formato de hexágonos. Essas salas hexagonais estão dispostas umas ao lado das outras em vários e vários andares: ou seja, distribuem-se tanto para os lados quanto para cima e para baixo, quase como uma colmeia monstruosamente grande. As ilustrações abaixo dão uma ideia aproximada dessa arquitetura inusitada, tanto da biblioteca como um todo quanto de cada hexágono em particular. Os trechos entre parênteses são as descrições conforme apresentadas nos parágrafos de Borges.

Padrão geométrico da Biblioteca ("O universo – que outros chamam a Biblioteca  é composto de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente"):
Interior de cada galeria ("A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, com cinco longas prateleiras por lado, cobrem todos os lados menos dois"):
Assim nos informa o narrador acerca da disposição das prateleiras e dos livros: "A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro tem quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, oitenta letras".

Ocorre que, conforme os axiomas apresentados pelo autor, os livros, apesar de estarem dispostos de modo aleatório nas prateleiras, seguem as seguintes regras (além das limitações acima mencionadas acerca do número de páginas, de linhas por página e de letras por linha):

1) Os livros são compostos invariavelmente por 25 caracteres (22 letras, vírgula, ponto e espaço). Os livros não contêm algarismos nem diferenciam letras maiúsculas de minúsculas;

2) Nenhum livro é absolutamente idêntico a outro. Isso significa que até podem existir livros muito parecidos entre si, que se diferenciam por apenas uma letra ou um ponto, por exemplo, mas não existem dois livros iguais em seus mínimos detalhes;

3) A Biblioteca contém todos os livros possíveis, sem se preocupar se seus conteúdos fazem sentido ou não (por exemplo: existe um livro que repete as letras M C V do começo ao fim; existe um livro idêntico a esse, mas que substitui o último V por um H; existe um livro que conta a história resumida da vida de Napoleão Bonaparte; existe outro que conta a mesma história, mas em inglês; outro o faz em alemão; outro, em um esquecido dialeto sumério misturado com castelhano; outro, ainda, conta a história até a metade, e depois segue uma sucessão incoerente de caracteres randômicos; também existem variadas versões de cada um desses livros, mas com uma ou duas ou três letras trocadas, etc., etc., etc...).

Asseguro que, só com essas informações, é possível calcular o número exato de galerias hexagonais existentes na Biblioteca de Babel.

Antes de ler minha solução para o problema, recomendo ao leitor que tente sozinho encontrar esse número. O desafio não é muito difícil, mas é divertido e vale alguns minutos de uma tarde preguiçosa.

***

Solução: sabemos que todos os livros têm o mesmo tamanho e o mesmo formato. Como cada livro é composto por 410 páginas, cada página tem 40 linhas e cada linha comporta 80 caracteres, então cada livro possui 410 x 40 x 80 = 1.312.000 caracteres.

Sabemos que existem exatamente 25 caracteres disponíveis, o que nos dá que, para cada livro, existem 25 possibilidades para o primeiro caractere, 25 possibilidades para o segundo, 25 para o terceiro, etc. Ou seja, existem 25 elevado à 1312000ª potência de livros possíveis (se cada livro tivesse 1 caractere, teríamos 25 livros possíveis; se cada livro tivesse 2 caracteres, teríamos 25 x 25 = 25² livros possíveis; se tivessem três caracteres, os livros possíveis seriam 25 x 25 x 25 = 25³; e assim sucessivamente). Como todos os livros possíveis de fato existem e como não existem livros em duplicidade, então a biblioteca possui exatamente 251312000 livros.

Agora basta descobrir quantos livros existem em cada galeria.

O narrador nos informa que cada galeria possui 20 prateleiras, 5 em cada parede, exceto em duas, que são as que dão acesso às outras áreas (e isso faz sentido, já que cada galeria possui 6 paredes, o que nos dá 4 paredes com 5 prateleiras cada). Como cada prateleira possui 32 livros, são 20 x 32 = 640 livros por galeria.

Sabendo que todas as galerias possuem o mesmo formato e comportam o mesmo número de livros, a quantidade de galerias é (251312000)/640.

Mas cuidado! Observe que a divisão de 251312000 por 640 não é exata (pode-se descobrir isso por meio das fatorações em números primos de 25 e de 640. Observe que 640 é múltiplo de 2, mas 25 não o é, e isso garante que a divisão de uma potência de 25 por 640 não possua resultado sem casas decimais). Logo, como a quantidade de galerias não pode ser um valor "quebrado", nem um número menor do que (251312000)/640, então o número de galerias é o primeiro número natural maior do que (251312000)/640 (chamamos isso de "função teto" e denotamos o teto de x por "x⌉").

Portanto, a quantidade exata de galerias da Biblioteca de Babel é:
Observação 1: o fato de a divisão não ser exata nos indica que uma das galerias não está completamente cheia.

Observação 2: o número 251312000 é grande demais para a mente humana sequer conseguir ter uma noção de seu tamanho. Vale dizer que, se escrevêssemos um algarismo por segundo, demoraríamos quase 22 dias para escrever todos os seus dígitos. A notação decimal "por extenso" de 251312000 tem cerca de 1,8 milhão de dígitos e é muito maior do que a quantidade de átomos existentes no universo observável.

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