terça-feira, 28 de janeiro de 2020

DESAFIO DE LÓGICA: Baralhos, Cubos Mágicos e Mega-Sena

Na semana passada, publiquei no meu Facebook o seguinte desafio: qual das alternativas abaixo é a mais provável de acontecer? E qual é a mais improvável?

A) Em um baralho comum já desorganizado depois de uma partida qualquer, embaralhar as cartas de modo completamente aleatório e no final sair com o baralho perfeitamente organizado, do jeito que ele veio quando foi comprado;

B) Em um cubo mágico desorganizado a esmo, mexer nele de modo completamente aleatório (de olhos fechados) e, no final, sair com o cubo resolvido, com todas as cores na posição correta;

C) Ganhar na Mega-Sena participando apenas uma vez e com um único jogo de seis números.

Sugiro ao leitor que, antes de ler a resposta, tente resolver por si só o problema. Ele é bem mais simples do que parece (por mais que a explicação abaixo seja um tanto extensa).


SOLUÇÃO

Dividirei a resposta em três partes.

Na primeira, farei alguns comentários gerais sobre a organização da resolução, definindo alguns termos que vão nos ajudar a compreender o raciocínio empregado.

Na segunda, apresentarei para o leitor, de modo bastante sucinto, alguns princípios envolvendo problemas de contagem (conceitos básicos de Análise Combinatória, como fatorial de um número natural, combinação simples e arranjo); essa parte será apenas uma revisão mínima da matéria para refrescar a memória das pessoas que não trabalham com isso há algum tempo.

Na terceira e última parte, darei a resposta propriamente dita.

O leitor que já estiver familiarizado com o assunto pode pular as duas primeiras partes da resposta sem prejuízo algum.

1) ORGANIZANDO
Como os três cenários apresentados (A, B e C) decorrem de processos inteiramente aleatórios, temos de nos preocupar apenas com a quantidade de configurações possíveis para cada evento.

Por configuração entendemos uma posição específica, quer seja do baralho, quer seja do cubo mágico, ou o conjunto dos números escolhidos, no caso do jogo de Mega-Sena.

Por exemplo: em um baralho de apenas três cartas (1, 2 e 3), temos as seguintes configurações possíveis:

1ª Configuração: 1, 2, 3
2ª Configuração: 1, 3, 2
3ª Configuração: 2, 1, 3
4ª Configuração: 2, 3, 1
5ª Configuração: 3, 1, 2
6ª Configuração: 3, 2, 1

Outro exemplo: o cubo mágico já montado é uma configuração específica do cubo. Se movermos um de seus lados apenas uma vez, obteremos uma nova configuração, diferente da primeira. No entanto, note que, rotacionando quatro vezes a mesma face em um mesmo sentido, a configuração permanece inalterada, pois todas as cores voltarão à posição de origem.

No contexto da Mega-Sena, o jogo {1, 7, 18, 29, 32, 33} é uma configuração possível, e {14, 19, 37, 48, 55, 59} é outra. Perceba que, neste caso, a ordem dos elementos não é importante. O jogo {1, 2, 3, 4, 5, 6} não é uma configuração distinta da do jogo {6, 5, 4, 3, 2, 1}, por exemplo, pois ambos os conjuntos são compostos pelos mesmos elementos.

A ideia central da resolução do problema é determinar qual dos cenários propostos, A, B ou C, tem o maior número de configurações possíveis. Aquele que tiver mais configurações possíveis será o menos provável de acontecer, e aquele que tiver menos configurações possíveis será o mais provável de acontecer (por mais que todos eles sejam dificílimos, praticamente impossíveis, de se verificar na prática).

Para entender melhor, veja que jogar duas moedas e obter duas caras (CC) é mais difícil do que jogar uma única moeda e obter uma coroa (K), já que, no primeiro caso, existem 4 configurações possíveis (CC, CK, KC, KK), enquanto na segunda existem apenas duas (C ou K). No primeiro caso, a chance é de 1/4; no segundo, a chance é de 1/2.

Para fins de resolução do problema, consideraremos um baralho comum, de 52 cartas distintas, e um cubo mágico 3x3x3 tradicional. As regras do jogo da Mega-Sena também são bem conhecidas: deve-se escolher 6 números em meio a 60 possibilidades e torcer para que os números escolhidos sejam, todos eles, os vencedores.

2) IDEIAS BÁSICAS DE ANÁLISE COMBINATÓRIA
Não usarei termos técnicos para explicar o assunto. Apenas uma noção geral da matéria é suficiente para a resolução do problema.

Suponhamos que queremos saber de quantas maneiras diferentes podemos organizar as letras A, B e C.

Ora, podemos fazer uma lista com todas as possibilidades e simplesmente contá-las. Esse procedimento é eficiente quando temos poucos elementos em jogo, mas seria impraticável se se tratassem, digamos, de todas as letras do alfabeto. A lista seria desumanamente longa.

O que podemos fazer é pensar do seguinte modo:

Quantas possibilidades temos para escolher a primeira letra da organização?

É evidente que temos 3 possibilidades (a primeira letra pode ser A ou B ou C).

Escolhida a primeira letra, quantas possibilidades temos para escolher a segunda?

Como uma das letras já terá sido escolhida, restam-nos duas letras, é claro.

Ao fim, a última letra já estará determinada (restará apenas uma opção).

Dessa forma, o número de possibilidades é de 3·2·1 = 6.

Isso se torna mais evidente quando analisamos o diagrama esquemático:


Vários problemas de contagem se comportam dessa mesma forma. O número de anagramas de uma palavra com cinco letras distintas, por exemplo, é de 5·4·3·2·1 = 120.

Por isso, é conveniente definirmos uma função para os números naturais que represente o produto desse número por todos os demais números naturais menores do que ele. Essa função se chama "fatorial" e é denotada pelo símbolo "!" na frente do número. Assim, para ilustrar, temos que:

7! = 7·6·5·4·3·2·1 = 5.040
15! = 15·14·13·...·3·2·1 = 1.307.674.368.000

No caso das cartas de baralho, as configurações possíveis são de assombrosas 52! maneiras (esse número, que tem 68 dígitos em sua expansão decimal, é muito maior do que a quantidade de segundos que se passaram desde a origem do universo até hoje, pelo menos segundo a teoria mais aceita do Big Bang).

Existem casos de contagem, contudo, que envolvem uma sutileza a mais: é quando temos de escolher uma certa quantidade de elementos de entre um conjunto maior, sendo que a ordem de escolha não é relevante.

Suponhamos, por exemplo, que devemos escolher duas letras dentre o conjunto formado pelas letras A, B, C e D (que possui quatro elementos). De quantas maneiras isso pode ser feito?

Neste caso, as escolhas possíveis são: {A, B}, {A, C}, {A, D}, {B, C}, {B, D}, {C, D}. Note que o conjunto {A, B} é idêntico ao conjunto {B, A}, pois aqui a ordem não importa, de modo que o conjunto foi contado uma única vez. O total de maneiras que podemos escolher duas letras dentre 4 letras distintas é, portanto, de 6 maneiras.

A forma mais eficiente para se calcular as possibilidades em casos como este é parecida com o caso em que a ordem importa: primeiro contamos todas as possibilidades como se a ordem importasse. Teríamos, no exemplo dado, 4·3 = 12 possibilidades (4 escolhas para a primeira letra vezes 3 escolhas para a segunda, totalizando 12 possibilidades). No entanto, procedendo dessa forma estamos contando alguns conjuntos mais de uma vez. Assim, devemos dividir esse resultado provisório pelo número de permutações possíveis dos elementos dentro de um mesmo conjunto. No caso em análise, como cada conjunto tem 2 elementos, devemos dividir o resultado provisório de 12 (considerando a ordem como se fosse importante) por 2! (para corrigir a contagem a mais dos conjuntos equivalentes, como é o caso de {A, B} e {B, A}). Como 2! = 2, ficamos com 12 ÷ 2 = 6 possibilidades.

No caso da Mega-Sena, por exemplo, devemos escolher 6 números dentre 60. De quantas maneiras podemos fazer isso?

Bem, fingindo que a ordem fosse importante, esse número seria de 60·59·58·57·56·55 = 36.045.979.200 maneiras.

Ocorre que um jogo em que foram escolhidos os números 1, 2, 57, 48, 33 e 12, por exemplo, é exatamente igual a um jogo em que foram escolhidos os números 1, 2, 12, 33, 48 e 57, ou um em que foram escolhidos 57, 48, 33, 12, 2 e 1. Isto é: a ordem de escolha não importa no jogo de Mega-Sena.

Como cada jogo possui 6 elementos, as permutações possíveis considerando apenas a ordem dos números de um mesmo jogo são de 6·5·4·3·2·1 = 720.

As possibilidades de jogo são, portanto, de 36.045.979.200 ÷ 720 = 50.063.860.

Assim, a chance de se vencer na Mega-Sena, jogando apenas uma vez com uma aposta de seis números, é de apenas uma em mais de cinquenta milhões (ou seja: é melhor colocar o dinheiro na poupança...).

Com os exemplos dados nessa seção, já podemos ver que o caso do baralho é muito mais difícil de acontecer do que o da Mega-Sena. Resta analisar o caso mais complicado do cubo mágico, que é onde se concentra o cerne do desafio.

3) ENFIM, A RESPOSTA!
Conforme já tratamos nos itens acima, as configurações possíveis para os casos A e C são fáceis de calcular.

Calcular o número de configurações possíveis em um cubo mágico 3x3x3 é algo mais delicado, pois não se trata de uma mera permutação simples: o cubo possui limitações físicas em razão de seu formato e de seu mecanismo. Não podemos, por exemplo, permutar uma peça de quina com uma de centro. Existem, portanto, configurações que não são possíveis de se verificar na prática.

Para sair dessa enrascada, existem duas opções: 1) Confiar nos cálculos de especialistas que já fizeram a conta; ou 2) Determinar não o valor exato, mas um intervalo no qual o número de possíveis configurações do cubo mágico esteja inserido.

Na saída preguiçosa 1), basta confiar que o número de configurações possíveis é de 43.252.003.274.489.856.000 e o problema estará resolvido. Esse número é muito maior do que o da Mega-Sena e estonteantemente menor do que o do baralho.

A outra forma, que é a que interessa, é a seguinte:

Primeiro, é fácil perceber que o número de configurações do cubo mágico é muito maior do que o de jogos da Mega-Sena. Basta observar que o cubo tem 12 cubinhos de meio de aresta (daqueles que ficam entre duas quinas) e que esses cubinhos são permutáveis entre si. Logo, temos 12! possibilidades de configuração só pensando na movimentação desses cubinhos. Agora é suficiente usar uma calculadora para constatar que 12! é igual a 479.001.600, um número já maior do que o de jogos possíveis na Mega-Sena.

Disso concluímos que o cenário mais fácil de acontecer é, com certeza, o C, de a pessoa ganhar na Mega-Sena fazendo uma única aposta de seis números.

Agora vamos mostrar que o número de configurações do cubo mágico não pode ser maior do que o de configurações das cartas do baralho, que é de 52!.

Observando que as faces de centro do cubo mágico são fixas, ou seja, que elas não mudam de lugar, restam 5 6 = 48 faces potencialmente permutáveis entre si no cubo. Ora, mesmo se pudéssemos fisicamente fazer todas essas permutações imagináveis, ainda assim teríamos, no máximo, 48! possibilidades. Como 48! é menor do que 52!, temos que as cartas de baralho com certeza possuem mais configurações possíveis do que as peças do cubo mágico.

Conclusão: A é o cenário mais improvável. C é o cenário mais provável.

Em verdade, é mais fácil ganhar duas vezes seguidas na Mega-Sena do que resolver o cubo mágico de olhos fechados. E é mais fácil resolver duas vezes seguidas o cubo mágico de olhos fechados do que deixar o baralho em uma ordem pré-estabelecida embaralhando-o de modo aleatório.

Só por curiosidade, o número 52! é o que segue abaixo:

52! = 80.658.175.170.943.878.571.660.636.856.403.766.975.289.505.440.883.277.824.000.000.000.000

Esse número é tão monstruosamente grande que, se você contar um número por segundo, começando do 1, e a cada um bilhão de anos você retirar uma gota do oceano, você conseguirá secar todos os mares do mundo antes de alcançar esse número.

Bora começar a contagem?

Um, dois, três, quatro...

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