segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Duas Provas da Irracionalidade do Número $e$

Hoje aprendi a inserir caracteres matemáticos mais sofisticados no blog. Para comemorar, resolvi publicar não uma, mas sim duas das demonstrações que eu considero mais belas e divertidas para comprovar que a constante $e$ (o número de Euler) é, de fato, um número irracional.

(Obs.: para conseguir ver as equações, é necessário acessar esta página por um computador, ou então ativar a função "versão para desktop", nos celulares Android, ou "site para computador", nos aparelhos iOS).

Como se trata de um assunto que já exige do leitor certo conhecimento prévio, apresentarei as provas de forma direta, sem me preocupar em ser didático. Ao leitor leigo que porventura tiver curiosidade sobre o assunto, não hesite em entrar em contato comigo: estarei mais do que disposto a explicar cada etapa das demonstrações e também a explicar os significados por trás de todo esse simbolismo.

Para as demonstrações abaixo, partirei do pressuposto de que o leitor já saiba que o número $e$, definido como $e = \displaystyle\lim_{n \to \infty} \left(1 + \dfrac{1}{n}\right)^n$, também pode ser representado pela série $e = \displaystyle\sum_{n=0}^{\infty} \dfrac{1}{n!} = \dfrac{1}{0!}+\dfrac{1}{1!}+\dfrac{1}{2!}+\dfrac{1}{3!}+\dfrac{1}{4!}+...$.

Dito isso, passemos às provas!

PROVA 1 – Uma construção geométrica

É comum apresentarem-se provas geométricas da irracionalidade de números como $\sqrt{2}$ e $\phi$, cujo surgimento mais natural é justamente por meio de alguma forma geométrica (no caso, $\sqrt{2}$ é a medida da diagonal de um quadrado de lado unitário, e $\phi$ decorre da relação entre segmentos divididos em média e extrema razão). Contudo, encontrar uma prova geométrica para um número como $e$ (ou mesmo $\pi$) parece ser algo bem mais complicado.

A demonstração abaixo, devida a Jonathan Sondow, foi desenvolvida em 2006 e pode ser encontrada no livro Teoria dos Números Transcendentes, de Diego Marques.

Primeiro, faremos uma construção geométrica na reta real a fim de obtermos o ponto $e$. A ideia é construir uma sequência de intervalos encaixados cuja intersecção seja $e$.

Para isso, vamos definir o intervalo $I_1 = [2, 3]$. Em seguida, vamos construir $I_2$ dividindo $I_1$ em dois subintervalos de mesmo comprimento e tomando o segundo intervalo da esquerda para a direita.

$I_3$ será construído dividindo $I_2$ em três subintervalos de mesmo tamanho e tomando o segundo intervalo da esquerda para a direita.

$I_4$ e todos os outros serão construídos de forma análoga: para obter $I_n$, teremos que dividir $I_{n-1}$ em $n$ subintervalos e tomar o segundo deles.

A figura abaixo é um esboço das quatro primeiras iterações desse processo. Os segmentos em vermelho dentro de cada intervalo indicam o intervalo imediatamente seguinte. Por exemplo, a parte vermelha em $I_1$ indica o segmento referente ao intervalo $I_2$.


Pela construção, cada intervalo $I_n$ terá tamanho $\dfrac{1}{n!}$ (certifique-se disso!).

Além disso, temos que:

$I_1 = \left[ 1 + \dfrac{1}{1!}, 1 + \dfrac{2}{1!}\right]$

$I_2 = \left[ 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!}, 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{2}{2!}\right]$

$I_3 = \left[ 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} + \dfrac{1}{3!}, 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} + \dfrac{2}{3!}\right]$

...

$I_n = \left[ 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} + ... + \dfrac{1}{n!}, 1 + \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} + ... + \dfrac{2}{n!}\right]$

Note que $I_n = \left[\dfrac{a_n}{n!}, \dfrac{a_n + 1}{n!}\right]$, para algum $a_n$ conveniente.

Agora perceba que, como $I_1 \supset I_2 \supset I_3 \supset ...$ e como o comprimento de $I_n$ tende a zero quando $n \to \infty$, temos que a interseção $\displaystyle\bigcap_{n=1}^{\infty}I_n$ tem apenas um ponto. Evidentemente, esse ponto é $e$, pois, pela construção, $e \in I_n$ para todo $n \in \mathbb{N}$.

Assim, para todo $n \in \mathbb{N}$, sempre existirá um $a_n \in \mathbb{N}$ tal que $\dfrac{a_n}{n!} < e < \dfrac{a_n + 1}{n!}$.

Se $e$ pudesse ser escrito na forma $\dfrac{p}{q}$, com $p, q \in \mathbb {N}$, teríamos que existiria um $a_q$ para o qual valeria $\dfrac{a_q}{q!} < \dfrac{p}{q} < \dfrac{a_q + 1}{q!}$. No entanto, $\dfrac{p}{q} = \dfrac{p[(q-1)!]}{q!}$, o que nos daria que $a_q < p[(q-1)!] < a_q + 1$, um absurdo, já que tanto $p[(q-1)!]$ quanto $a_n$ são números inteiros, e nenhum número inteiro poder estar entre outro inteiro e seu sucessor.

PROVA 2 – Utilizando a série da função exponencial

Queremos mostrar que $e$ é um número irracional, isto é, que $e$ não pode ser escrito na forma $\dfrac{a}{b}$, com $a, b \in \mathbb{N}$. Para fazer isso, vamos considerar que tais números $a, b \in \mathbb{N}$ de fato existem. Ao final, mostraremos que isso é um absurdo.

Se $e = \dfrac{a}{b}$, então $e^{-1} = \dfrac{b}{a} = \dfrac{b[(a-1)!]}{a!}$.

Contudo, sabemos que $e^x = \displaystyle\sum_{n=0}^{\infty} \dfrac{x^n}{n!}$.

Assim, temos que $e^{-1} = \displaystyle \sum_{n=0}^{\infty} \dfrac{(-1)^n}{n!}$.

Ou seja:

$e^{-1} = \dfrac{1}{0!} - \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} - \dfrac{1}{3!} + \dfrac{1}{4!} - \dfrac{1}{5!} + ... \Rightarrow$

$e^{-1} = \left(\dfrac{1}{0!} - \dfrac{1}{1!} + \dfrac{1}{2!} - ... \pm \dfrac{1}{a!} \right) \mp \left(\dfrac{1}{(a+1)!} - \dfrac{1}{(a+2)!} + ... \right)$

Agora, note que a soma (finita) do primeiro par de parênteses é algo na forma $\dfrac{N}{a!}$.

No entanto, o segundo par de parênteses contém uma série alternada cujo termo geral tende a zero e na qual cada termo é menor do que o anterior. Isso faz com que cada soma parcial fique "imprensada" entre as somas parciais anteriores, conforme ilustrado abaixo.


Assim, a série do segundo par de parênteses tem soma entre $0$ e $\dfrac{1}{(a + 1)!}$ (consequentemente, entre $0$ e $\dfrac{1}{a!}$).

Dessa forma, $e^{-1} = \dfrac{N}{a!} \pm \varepsilon$, onde $0 < \varepsilon < \dfrac{1}{a!}$, o que significa que $e^{-1}$ está ou entre $\dfrac{N}{a!}$ e $\dfrac{N + 1}{a!}$ ou entre $\dfrac{N - 1}{a!}$ e $\dfrac{N}{a!}$, o que contraria nossa hipótese de que $e^{-1} = \dfrac{b[(a-1)!]}{a!}$, já que $b[(a-1)!]$, sendo natural, não pode estar no intervalo entre um número natural e seu sucessor.

Portanto $e$ é irracional.

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