domingo, 23 de fevereiro de 2020

Teoremas são como fábulas...

Muito do que aprendemos de lições abstratas para a vida provem de histórias de ficção repletas de conteúdo imagético e fantasioso. A força e a longevidade das fábulas, dos "causos", dos mitos e lendas, como as de La Fontaine, de Esopo, as aventuras épicas de Homero, as mitologias de todos os tempos e culturas, as parábolas de Jesus Cristo e os contos de milenar sabedoria oriental, se devem ao fato de que essas histórias – que compõem o imaginário da nossa cultura, a base da nossa visão de mundo e do modo pelo qual valorizamos a realidade e as relações interpessoais – são essencialmente constituídas de imagens.

O interessante é que isso não acontece só em questões de humanidades, mas também na matemática (que é, ela mesma, uma cultura própria: e uma das mais ricas em beleza e significados!).

É como Terence Tao disse: "exercícios e desafios matemáticos são importantes para a matemática séria (que se preocupa em resolver problemas da vida real) da mesma maneira que fábulas, histórias e anedotas são importantes para os jovens, para que eles comecem a compreender as questões morais da vida real".

Além disso, assim como os valores morais precisam de histórias e imagens para se sedimentarem na nossa personalidade, também as verdades matemáticas se tornam mais palpáveis e evidentes quando as compreendemos por meio de alguma associação visual. Um estímulo material ou uma interpretação geométrica são sempre desejáveis para que teoremas abstratos adquiram naturalidade e simplicidade na nossa mente, refinando, assim, nosso entendimento 
e deixando nossa intuição muito mais certeira.

Um exemplo extremamente simples é o seguinte. Observe que:

$1 = 1 = 1^2$

$1 + 3 = 4 = 2^2$

$1 + 3 + 5 = 9 = 3^2$

$1 + 3 + 5 + 7 = 16 = 4^2$

$1 + 3 + 5 + 7 + 9 = 25 = 5^2$

...

O que está acontecendo aqui? Parece que a soma dos $n$ primeiros números ímpares é sempre $n^2$, não parece?

Em outras palavras, suspeitamos que $1 + 3 + ... + (2n - 1) = n^2$.

Com efeito, essa relação é verdadeira. Podemos prová-la com facilidade por meio da fórmula para a soma dos termos de uma P.A. No entanto, uma demonstração assim, por mais que simples, seria facilmente esquecida, e não daríamos grande importância para a relação estabelecida. Para piorar, mesmo estando rigorosamente provada a relação, não teríamos compreendido realmente o porquê disso tudo. Não teríamos sentido de uma forma mais profunda o que essa equação "$1 + 3 + ... + (2n - 1) = n^2$" realmente quer dizer. Só teríamos feito a comprovação por meio de símbolos, seguindo um procedimento simples (e quase mecânico) para o qual não necessariamente teríamos atribuído significado.

A melhor forma de enxergar que a soma dos $n$ primeiros números ímpares resulta no quadrado de $n$ é imaginando quadrados unitários.

Um quadrado unitário:
Agora, como podemos construir o próximo quadrado formado por quadrados unitários? Acrescentando 3 novos quadrados, é claro!
E como podemos construir o quadrado de área $3^2$, partindo do anterior (de $2^2$)? Acrescentando os 5 quadradinhos que faltam, é óbvio!
E o de $4^2$? Ora, agora faltam 7 quadradinhos. Assim:
E assim por diante:
Ou seja: partindo de um quadrado $m$ por $m$, para formar o quadrado seguinte, sempre precisamos acrescentar uma nova coluna de $m$ quadradinhos, uma nova linha de $m$ quadradinhos e o quadradinho que fica faltando, na quina. Assim, acrescentamos $m + m + 1 = 2m + 1$ quadradinhos. E $2m + 1$, evidentemente, sempre é um número ímpar.
Para quem não se sente convencido (se que é existe uma tal pessoa), a demonstração algébrica formal é a seguinte:

A soma dos $n$ primeiros números ímpares é $1 + 3 + ... + (2n - 1)$. Isso é a soma dos termos de uma P.A. de razão 2 (na forma $a_1 + a_2 + ... + a_n$). Logo, a soma dos seus termos é $\dfrac{(a_1 + a_n)\cdot n}{2} = \dfrac{[1 + (2n - 1)]\cdot n}{2} = \dfrac{(2n)\cdot n}{2} = n^2$.

Menos instrutivo (e divertido), não é mesmo?

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