quarta-feira, 24 de maio de 2023

TECNOLOGIA E CIÊNCIA: Por que pensar de modo abstrato se o que desejamos é construir objetos palpáveis e realizar invenções no mundo material?

É bastante frequente ouvirmos, mesmo de pessoas de inteligência elevada e agraciadas com excelente formação educacional, que elas não entendem por que alguém deveria se preocupar com questões abstratas (como se abstração fosse sinônimo de vagueza ou ilusão) e que elas não veem propósito em excesso de teorias, quando o que importa na verdade é a prática. São comentários mais do que compreensíveis, tendo em visto que a maior parte das pessoas utiliza os resultados da matemática e da ciência como instrumentos em seus trabalhos, sem estar familiarizada com a atividade, de natureza inteiramente diversa, que é a produção da ciência per se. Além disso, é muito comum que mesmo cientistas e pesquisadores não tenham plena consciência do real papel de suas atividades no contexto mais amplo da sociedade em que estão inseridos e da época historicamente condicionada em que vivem: como qualquer outro trabalhador, professores e pesquisadores estão comprometidos com seus afazeres do dia a dia, não com alguma interpretação filosófica acerca desses afazeres em macro escala.

Ainda assim, é importante que, vez ou outra, façamos algumas reflexões sobre esses temas. Retornar ocasionalmente a eles, com mentalidade renovada, expande nosso entendimento do mundo e confere novas dimensões de significado para nossas atividades e comportamentos cotidianos, os quais muitas vezes são feitos em modo automático.

Como qualquer bom matemático – ou seja, uma pessoa cujo trabalho da vida inteira está relacionado à construção de teorias essencialmente desvinculadas de observações do mundo material –, já defendi o valor intrínseco da ciência e o poder do pensamento abstrato em outras ocasiões. Nessas defesas, utilizei argumentos predominantemente voltados a propósitos educacionais, enfatizando que a riqueza das ideias abstratas que não têm conexão direta com aplicabilidades práticas é elemento essencial no afloramento das melhores características de uma pessoa. Desta vez, no entanto, optei por uma abordagem diferente, preocupando-me com melhorias fáticas para a sociedade como um todo. Para isso, teci uma breve análise do desenvolvimento histórico da abstração no mundo da ciência e da tecnologia.

Para essa abordagem, vamos começar propondo uma classificação talvez um tanto imprecisa e inusitada, mas bastante propícia para os fins a que nos destinamos. A proposta é que direcionemos nossa atenção não aos resultados das invenções do ser humano ao longo dos séculos, mas, sim, às maneiras pelas quais tais invenções foram obtidas. Em verdade, se pensarmos na história da humanidade pelo prisma das evoluções tecnológicas (desde o surgimento da linguagem e das primeiras formas de cultivo da terra até a popularização de espaços cibernéticos de interação, comunicação e compartilhamento instantâneo de informações à distância), veremos que é conveniente dividir essa história em duas principais etapas ou “eras”: a era das invenções surgidas a partir de reiteradas tentativas e erros, que chamaremos de “era empírica”, e a recentíssima era das invenções decorrentes diretamente de teorias abstratas, a que daremos o nome de “era científica”.

A primeira etapa, muito mais extensa, é caracterizada por mudanças sociotecnológicas vagarosas nas quais as teorias intelectuais, quando existentes, são meras ferramentas secundárias para a realização de um propósito prático. Ilustrativamente, podemos imaginar como teriam surgido as primeiras técnicas de agricultura e pecuária. Conforme escreve Stanislaw Lem sobre o assunto, “a passagem do paleolítico para o neolítico, cujo impacto cultural é comparável à revolução atômica, não ocorreu porque um Einstein da época da pedra lascada teve uma ideia de cultivo da terra e convenceu seus contemporâneos sobre as vantagens dessa nova técnica. Foi um processo muito lento, excedendo a duração da vida de muitas gerações”. Contudo, é importante notar que nesta categoria não se enquadram apenas técnicas rudimentares de um passado remoto. A característica mais fundamental da era empírica da tecnologia é o fato de que o ato criativo se dá por meio do método da tentativa e do erro, com soluções teóricas vindo apenas depois, ou existindo apenas em caráter instrumental: primeiro surgiu a máquina a vapor, e somente depois foi realizada sua análise termodinâmica; primeiro veio o avião, depois as teorias aerodinâmicas; primeiro o homem construiu pontes, só depois aprendeu a fazer os cálculos que as sustentam.

Note que, por mais maravilhas e engenhosidades que o método da tentativa e do erro possa proporcionar – e por mais portentos que ele de fato tenha gerado ao longo da nossa história – sua evolução é limitada: ela prossegue só até o ponto em que é factível. Thomas Edison descobriu dez mil maneiras de não construir o que queria, e por fim nos deu a lâmpada elétrica; no entanto, mesmo no mais alto de sua genialidade, ele não lograria sucesso caso tentasse desenvolver algo como um computador. Na realidade, por meio de tentativas e erros é possível construir um motor a combustão, mas não um reator nuclear.

A era empírica da tecnologia, desnecessário dizer, não é uma sucessão cega de experimentos mal pensados que eventualmente dão certo. Existem planejamentos e concepções bem determinadas, e usualmente o inventor-prático divisa com lucidez boa parte dos traçados do caminho que tem pela frente. Contudo, seu trabalho depende de feedback negativo, onde cada falha do experimento indica que o caminho a ser tomado deve ser outro, seguindo um percurso em ziguezague até o destino almejado.

Escapando dos pedregosos caminhos em ziguezague, a conquista do conhecimento teórico permite dar um salto repentino para a frente. Stanislaw Lem lembra que, “durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães não tinham uma teoria de voo balístico dos foguetes supersônicos, e a forma dos seus V2 foi definida após numerosos testes empíricos (feitos em modelos reduzidos em um túnel aerodinâmico). Obviamente, o conhecimento de uma determinada fórmula tornaria dispensável a construção desses modelos todos”.

Uma evolução sem precedentes no poder de dominação do homem sobre a natureza se deu, não por acaso, quando sociedades poderosas perceberam que valeria a pena investir de modo massivo em pesquisa de base, ou, mais precisamente, em investigações teóricas desprovidas de aplicabilidade imediata. Foi a partir daí que, pouco a pouco, a humanidade passou à era científica da tecnologia. Nessa era, após um longo esforço de coleção de conhecimentos esparsos e observações pontuais sobre a natureza, procedeu-se a grande fecundidade das ciências nomotéticas, isto é, das ciências empenhadas em ordenar sistematicamente os fatos conhecidos e, então, promover generalizações por meio de leis de larga abrangência, em busca da mais ampla universalidade. É dizer: quanto mais fatos e fenômenos forem englobados pelo menor número de princípios abstratos gerais, melhor. O exemplo mais vistoso desse tipo de conquista em campo teórico é a mecânica clássica, germinada por Galileu e concebida por Newton: por meio de umas poucas enunciações gerais (como o princípio da inércia, o princípio da dinâmica e a lei da ação e reação), consegue-se descrever boa parte do mundo físico, bem como sobre ele realizar previsões acuradas. O mesmo se pode dizer a respeito do eletromagnetismo de Maxwell e da relatividade de Einstein, entre outros grandes edifícios da admirável sapiência humana.

Entramos, pois, na era científica da evolução tecnológica; era em que amplas generalizações impulsionam descobertas e invenções que não poderiam ser efetivadas de outro modo. Conforme observa Lem, “o conhecimento do homem só agora está emergindo do período empírico, e não em todas as áreas, mas hoje já percebemos que quase tudo aquilo a que bastava a paciência e a perseverança, iluminadas pelo clarão da intuição, já foi de fato realizado. Todo o resto, que exige a mais alta clareza do pensamento teórico, ainda está à nossa frente”.

Precisamos, portanto, investir cada vez mais em sólida formação teórica (sem prescindir de maturidade prática) a fim de que novas invenções e intervenções possam ser feitas de modo consciente e prudente no mundo dos fatos, nos mais variados âmbitos: físico, digital, social, econômico, jurídico, psicológico, etc.

É preciso notar que o desinteresse pelas investigações teóricas foi outrora maior do que é hoje. Graças à experiência, sabemos que não existe conhecimento inútil, porque nunca se sabe quando uma informação pode tornar-se necessária e valiosa. Stanislaw Lem recorda que “um dos ‘dispensáveis’ ramos da botânica, a liquenologia, dedicada aos líquens, tornou-se vivificante no momento da descoberta da penicilina”. A matemática contemporânea, por sua vez, é fértil em sub-ramos que, na conjuntura atual, não encontram o mínimo sinal de aplicabilidade nem mesmo nas mais vagas especulações de outras ciências; ainda assim, suas bases já estão firmes e consistentes para sustentar possíveis problemáticas que a elas devam se socorrer: os encadeamentos lógicos já estão fixados, sem elos fracos, para conduzir a ciência e solucionar problemas que ainda estão por surgir. Com razão, vale lembrar que Newton, no século XVII, preocupado primordialmente com a física, e não com a matemática, teve de desenvolver todo um aparato matemático (o Cálculo Diferencial) para servir de linguagem à sua teoria mecânica; três séculos depois, Einstein, em situação similar, já encontrou pronta à sua disposição toda a matemática abstrata necessária para registrar sua muito mais complicada Teoria da Relatividade.

Vemos, então, que nos encontramos em uma era na qual o progresso tecnológico nas mais variadas áreas não pode prescindir de rico substrato teórico que nem sempre está focado apenas no progresso em si. A ciência, esse substrato teórico, é uma investigação das regularidades do mundo, enquanto a tecnologia representa o seu aproveitamento para satisfazer as necessidades dos seres humanos. Vestir-nos, alimentar-nos, dar-nos abrigos, transportar-nos de um lugar para outro, proteger-nos de doenças, possibilitar nossa comunicação: eis as tarefas da tecnologia. A ciência cuida dos fatos, e não de nós (pelo menos não no sentido de que seus resultados tenham de nos servir diretamente).

Apresentamos, até aqui, uma classificação útil e interessante, mas, como toda classificação, insuficiente para captar todas as nuances do fenômeno em análise. Uma objeção sensata que podemos fazer à classificação do progresso tecnológico em "etapa empírica" e "etapa científica" diz respeito à divisão em eras estritamente temporais: com um pouco mais de sensibilidade, podemos perceber que elementos da era científica já existiam há milhares de anos (a geometria axiomática de Euclides, por exemplo) e que resquícios da era empírica permanecem até hoje (e possivelmente vão permanecer para sempre, sobretudo em áreas de maior complexidade, ou seja, áreas que envolvem uma maior quantidade de elementos inter-relacionados, como é o caso da medicina, ou mesmo em campos do conhecimento que não são puramente científicos no sentido mais exato do termo, como é o caso da psicologia e da semiótica).

Outro assunto que deixamos para examinar em nova oportunidade é a questão não menos importante da avaliação moral e do sopesamento ético inerente a cada avanço científico, a cada incremento tecnológico e a cada utilização específica das tecnologias. Afinal, as tecnologias são mais invasivas do que costumamos julgar. Suas ingerências na vida psíquica, na síntese e na metamorfose da personalidade, na estruturação das relações sociais, nas formas pelas quais nos relacionamos uns com os outros e nos significados que atribuímos a tudo aquilo que nos cerca ainda estão por ser adequadamente medidos. Seus impactos e condicionamentos certamente são subestimados pela psicologia e pela sociologia atuais.

Adicionalmente, cumpre observarmos que a efervescência positiva da era científica exige ambiência sociocultural favorável, uma vez que, sem terreno fértil, nenhuma semente pode germinar. Para que as teorias abstratas possam florescer e produzir seus frutos, é necessário que a economia e o campo intelectual das sociedades interessadas sejam propícios. A cada nação e a cada época não faltam potenciais Newtons e Einsteins, mas é necessário que haja fomento adequado à maturação dessas mentes geniais e, também, que haja ressonância social que amplifique os resultados de seus trabalhos individuais. Sem isso, retrocedemos à tentativa e erro, quiçá às crendices medievais. Com isso, mas sem maturidade ética decorrente de fina sensibilidade humana, possivelmente rumaremos à dominação da técnica sobre o espírito, da criação sobre o criador, em insidiosa obnubilação da alma humana e definhamento de seu incrível potencial para o engenho, para a arte, para o sonho e para o amor.


Referência complementar: LEM, Stanislaw. Duas Evoluções. In: Nova Cosmogonia e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2019.

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