Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 - 1716) foi um filósofo e matemático alemão cujos trabalhos abrangem uma enorme quantidade de áreas do conhecimento humano. Além de, paralelamente a Newton, ter desenvolvido as bases do cálculo moderno, Leibniz fez contribuições de relevo nos campos da linguística, da lógica, da poética, da filosofia da matemática, da metafísica e da teologia.
No texto que segue abaixo, Leibniz faz sua incursão em uma das modalidades mais antigas de apresentação de teses filosóficas: o diálogo. Apesar de hoje ter caído em desuso, a forma do diálogo é utilizada pelo menos desde Platão, em quem Leibniz encontrou inspiração para esse texto.
Em "Diálogo sobre a relação entre as palavras e as coisas", o pensador alemão contesta tanto a posição de Thomas Hobbes, para quem a verdade é algo arbitrário, quanto a de Decartes, segundo o qual a verdade se funda na vontade de Deus. Mais do que isso, o diálogo já traz em embrião ideias e preocupações que, séculos mais tarde, estariam no cerne das mais avançadas teorias da linguística e da filosofia, como, por exemplo, o conceito de signo linguístico da semiótica e a refutação ao relativismo absoluto que ganhou tanta notoriedade nos movimentos pós-modernos do século passado.
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Retrato de Gottfried Wilhelm Leibniz feito por Bernhard Francke |
DIÁLOGO SOBRE A CONEXÃO ENTRE AS PALAVRAS E AS COISAS, por G. W. LEIBNIZ
Tradução: Gustavo Lopes Perosini
A: Se eu te desse um fio e pedisse para você unir as pontas dele, formando uma só linha, de tal modo que ele ocupasse o maior espaço possível, como você realizaria essa tarefa?
B: Formando um círculo, é claro, pois os geômetras mostram que o círculo é a figura cujo interior tem a maior área. Isso significa que, se existissem duas ilhas, uma circular e outra quadrada, que pudessem ser circunvagadas em tempo igual, a circular certamente teria maior superfície.
A: Você não acha que isso seria verdade mesmo se você não tivesse pensado nisso?
B: Era verdade, sem dúvida, ainda antes de os geômetras terem feito a demonstração e até mesmo antes de os homens terem observado esse fato pela primeira vez.
A: Então você considera que a verdade e a falsidade se dão nas coisas, e não nos pensamentos.
B: Exato.
A: Existe, portanto, alguma coisa que seja falsa?
B: Uma coisa falsa eu creio que não, mas apenas o pensamento e a proposição que versam sobre a coisa.
A: Então a falsidade é uma propriedade do pensamento, e não das coisas.
B: Sou forçado a reconhecer que sim.
A: Então por que a verdade também não seria?
B: Parece que ela é, sim, mas me vejo um pouco inclinado a duvidar da validade dessa conclusão.
A: Quando te fazem uma pergunta, você não fica na dúvida se a resposta que você vai dar é verdadeira ou falsa até que você esteja completamente certo da sua opinião?
B: Claro.
A: Você admite, portanto, que o mesmo assunto está sujeito à veracidade ou à falsidade até que uma ou outra seja determinada pela natureza particular da questão?
B: Eu admito que sim, e também reconheço que, se a falsidade é uma propriedade do pensamento, então a verdade também deve ser.
A: Mas isso contradiz o que você disse antes, quando afirmou que existem verdades sobre as quais ninguém nunca pensou.
B: Você me deixou confuso.
A: Devemos tentar reconciliar as duas visões. Vamos pensar da seguinte forma: você acha que todos os pensamentos que podem ser feitos são, na realidade, efetivamente formados? Ou, para deixar a pergunta mais clara, você acha que todas as proposições são de fato pensadas?
B: Acho que não.
A: Parece, então, que a verdade é uma qualidade das proposições e dos pensamentos, mas apenas dos pensamentos possíveis, de modo que a certeza que temos é que, se alguém tiver a possibilidade de pensar de uma maneira ou da maneira contrária, então dessa forma seu pensamento será verdadeiro ou falso.
B: Você foi bem-sucedido em nos levar a um lugar seguro.
A: Mas, como é necessário que exista uma causa para que um pensamento seja verdadeiro ou falso, pergunto: aonde podemos buscar essa causa?
B: Creio que na natureza das coisas. Ou seja, nas características essenciais daquilo sobre o que o pensamento trata.
A: Mas por que esse pensamento não surgiria da sua própria natureza, quero dizer, da natureza da pessoa que está pensando?
B: Certamente não poderia surgir apenas da minha natureza sozinha. Pois a minha natureza e a natureza das coisas sobre as quais eu penso devem ser de tal forma que, quando eu proceder por um método válido, eu deva necessariamente inferir a proposição pertinente e encontrar a verdade.
A: Sua resposta é excelente, mas ainda existem dificuldades.
B: Diga-me quais, por favor.
A: Alguns homens de boa instrução acreditam que a verdade surja do arbítrio humano, dos nomes e dos caracteres.
B: Essa opinião é muito paradoxal.
A: Mas eles provam isso da seguinte forma: A definição não é o princípio da demonstração?
B: Reconheço que sim, pois certas proposições podem ser demonstradas pela simples reunião de definições.
A: Então a verdade dessas proposições depende das definições.
B: Está certo.
A: Mas as definições dependem da nossa vontade.
B: Como assim?
A: Você não percebe que decorre da vontade dos matemáticos usar a palavra “elipse” para significar uma certa figura? E que estava no âmbito da escolha dos falantes do latim atribuir um significado para a palavra “círculo”, expressando-lhe a definição?
B: Compreendo... Mas pensamentos podem ocorrer sem palavras.
A: Mas não sem pelo menos algum outro signo, símbolo ou caractere. Tente, por exemplo, fazer qualquer cálculo aritmético sem usar signos numéricos.
B: Você me deixou assombrado. Eu nunca pensei que os signos e caracteres fossem tão indispensáveis para o raciocínio.
A: Você aceita, portanto, que as verdades aritméticas pressupõem a existência de alguns signos ou caracteres?
B: Isso não pode ser contestado.
A: Então essas verdades dependem da vontade humana?
B: Sinto que você está me levando para algum tipo de armadilha...
A: Essas ideias não são minhas, mas de um escritor muito famoso.
B: Não sei... Como alguém pode se afastar tanto assim do bom senso a ponto de persuadir a si mesmo de que a verdade é arbitrária e que ela depende dos nomes, mesmo sabendo que a geometria dos gregos, dos latinos e dos germânicos é sempre a mesma?
A: Você está certo; ainda assim, a dificuldade precisa ser resolvida.
B: Existe um ponto que me faz parar para pensar. Eu notei que nenhuma verdade pode ser conhecida, descoberta ou provada se não fizermos o uso de palavras ou outros signos que estejam presentes na nossa mente.
A: Acrescento que, se não houvesse caracteres, nunca conseguiríamos pensar com distinção sobre qualquer coisa, nem seríamos capazes de raciocinar.
B: Mas quando olhamos para as figuras geométricas extraímos delas verdades mediante uma meditação rigorosa.
A: Assim é. Repare, no entanto, que, para considerar essas figuras como caracteres, você deve saber que o círculo traçado sobre o papel não é um círculo perfeito e que nem é necessário que ele seja, sendo suficiente que nós apenas o tomemos por um círculo de verdade.
B: Mas a figura deverá ter certa semelhança com um círculo, e essa semelhança com certeza não é arbitrária.
A: De fato, e por isso as figuras são os mais úteis dos caracteres. Mas que semelhança existe entre o número dez e o caractere “10”?
B: Entendo o que você quer dizer. Contudo, deve existir alguma relação ou ordem nos caracteres que seja análoga àquela que se dá nas coisas, principalmente se os caracteres tiverem sido bem escolhidos.
A: Mas que semelhança com as coisas têm os primeiros elementos mesmos, por exemplo, o “0” com o nada ou o “r” com a linha? Você ao menos esta forçado a admitir que entre estes elementos não é preciso que haja semelhança alguma.
B: Realmente. Mas observo que, se os caracteres podem ser aplicados ao raciocínio, deve haver entre eles uma construção complexa de conexões, uma ordem que concorde com as coisas, se não nas palavras individuais (por mais que isso seja preferível), ao menos em suas conexões e flexões. E essa ordem, com algumas variações, tem sua correspondência de algum modo em todas as línguas. Foi isso, aliás, que me deu a esperança de escapar da dificuldade. Porque, ainda que os caracteres sejam arbitrários, seu emprego e conexão têm, contudo, algo que não é arbitrário, a saber: certa proporção entre os caracteres e as coisas e nas relações entre os diversos caracteres que expressam as mesmas coisas, sendo que essa proporção ou relação é o fundamento da verdade. Com efeito, essa proporção ou relação faz com que, ainda que empreguemos estes ou outros caracteres, o resultado sempre seja o mesmo, sendo algo equivalente ou algo que corresponda em adequada proporção. Mesmo que para pensar sempre seja necessário empregar alguns caracteres.
A: Exato! Você expôs tudo de modo completamente claro. E isso confirma o cálculo dos analistas e dos aritméticos. Porque nos números as coisas ocorrem sempre do mesmo modo, quer se utilize a escala decimal ou, como fazem alguns, a duodecimal; e os cálculos podem ser feitos de diversas maneiras, podendo ser efetuados com pequenos gravetos ou com outras coisas suscetíveis de serem numeradas, pois o resultado será sempre o mesmo. Ocorre na análise, algumas vezes, que, ao se empregar caracteres diferentes, percebe-se com maior facilidade novas propriedades. Por exemplo, se o quadrado de um certo número for representado por a² e resolvermos substituir “a” por “b + c”, teremos o quadrado (b + c)² = b² + c² + 2bc; também podemos escrever “a” como sendo “d – e”, o que nos dará o quadrado (d – e)² = d² + e² – 2de. No primeiro modo expressamos a relação do todo, “a”, com as partes “b” e “c”; no segundo, a relação da parte “a” com o todo “d” e seu excesso “e” sobre a parte “a”. Contudo é claro que, se efetuarmos as substituições, sempre voltaremos à situação original. Veja que, na fórmula d² + e² – 2de (que equivale a “a²”), substituindo “d” pelo seu valor “a + e”, então, no lugar de d², teremos (a + e)² = a² + e² + 2ae, e, ao invés de –2de, teremos –2(a+e)e = – (2ae + 2e²). Portanto, reunindo a soma, temos que:
a² = d² + e² – 2de = (a + e)² + e² – 2(a+e)e = (a² + e² + 2ae) + e² – (2e² + 2ae)
O que, rearranjando os termos e realizando os cancelamentos, resulta em... a².
Perceba que, de qualquer maneira que se some os caracteres, com a condição apenas de que em seu emprego se observe certa ordem e medida, tudo concordará, sempre. Portanto, apesar de as verdades suporem, necessariamente, alguns caracteres, esses caracteres não consistem no que têm de arbitrário, mas, sim, no que é verdadeiro e não depende da nossa vontade, é dizer, na relação deles com as coisas. Assim, há de se produzir determinado raciocínio se se empregam esses caracteres e igualmente se se empregam outros, por mais diferentes que sejam, desde que a relação entre eles e os anteriores conserve uma associação com as coisas em si, por eles expressadas. Assim, a relação entre uns e outros caracteres mantém a equivalência quanto se os substitui e se os compara.
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Um dos manuscritos de Leibniz. |
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LEIBNIZ, G. W. Dialogue (1677). In: Loemker, L. E. (ed.). Philosophical Papers and Letters. The New Synthese Historical Library (Texts and Studies in the History of Philosophy), vol. 2. Springer, Dordrecht, 1989.
LEIBNIZ, G. W. Diálogo sobre la conexión entre las cosas y las palabras (agosto de 1677). In: Olaso, Ezequiel de (ed.). Escritos filosóficos. A. Machado Libros: Espanha. 2003.
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