quarta-feira, 24 de abril de 2019

ENTENDENDO A LÓGICA INTUITIVA DOS NUMERAIS ROMANOS: uma breve história linguístico-filosófica sobre as origens dos sistemas de numeração

Qualquer pessoa que é apresentada pela primeira vez às regras de formação dos numerais romanos inevitavelmente tem uma sensação de insatisfeita perplexidade frente a algo ineficaz e desnecessariamente confuso. Ninguém consegue conter a formação de uma ruga de estranhamento na testa quanto pensa a sério sobre como o sistema de numeração romano é péssimo para a realização de cálculos aritméticos e mesmo para a simples representação de números um pouco mais elevados do que os que usamos no dia a dia. Imagine, por exemplo, a dificuldade que seria ter de representar com rapidez o número 476.934 em notação romana ou com ela realizar uma conta do tipo MMMCDXLIII + CCCXCII (isso para não entrar no mérito das frações, das dízimas periódicas, das equações e dos polinômios...: "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo" até mesmo na matemática!).

Pensando nisso, a ruga de estranhamento com certeza cresce quando refletimos sobre o quão inusitado é que uma civilização antiga, embora bastante sofisticada, tenha desenvolvido regras peculiarmente complexas para registrar algo tão simples quanto o resultado de um processo de contagem (que é o que os números são, em sua conceituação mais simples), em detrimento da simplicidade lógica e intuitiva dos algarismos que usamos hoje em dia com o sistema indo-arábico de base 10. Parece-nos, hoje, que não seria de se esperar que, nos primórdios de uma escrita numérica formalizada, se utilizasse um método que exige mais procedimentos sintáticos (e, consequentemente, mais energia intelectual) do que os naturalmente necessários em uma escrita numérica rudimentar. Em suma: não nos parece nem um pouco natural que as coisas tenham se desenvolvido dessa forma.


A verdade, no entanto, por mais estranho que isso possa soar antes de uma explicação detalhada, é que as regras de formação no nosso sistema numérico atual não são tão simples quanto parecem, e as regras no sistema romano são, em essência, muito mais intuitivas. Se não conseguimos perceber isso hoje, isso se dá apenas porque fomos ensinados, desde o berço, a contar e registrar quantidades por meio do sistema indo-arábico, e não por qualquer outro, não existindo uma suposta tendência humana inata de utilizar esse sistema em particular (o qual, vale a pena registrar, é historicamente recente, de modo que muitos grandes matemáticos fizeram suas descobertas e demonstrações por meio de notações muito diferentes daquelas com as quais estamos acostumados).

Pensemos com honestidade: se, partindo do nada, tivéssemos que registrar algo tão abstrato quanto um número, o que usaríamos? Será que contaríamos com “1, 2, 3, 4, ...”? Como faríamos para contar antes da existência de qualquer símbolo gráfico que represente um número? É difícil sequer cogitar essa hipótese, agora que já estamos inseridos em uma cultura bem estabelecida e já possuímos sólida formação educacional. Mas com um pouco de esforço imaginativo talvez cheguemos à conclusão de que o método mais espontâneo seria associar um risco no papel a cada um dos elementos que pretendemos contar (é isso o que fazem os presidiários que contam seus dias numa cela, e é assim que registramos as pontuações em certos jogos com os amigos).


De fato, a partir de muita pesquisa, a História da Matemática supõe com bastante segurança que foi assim que surgiram os primeiros registros gráficos de contagem, numa época ancestral na qual as noções de escrita, de número, de religião e de arte se mesclavam e se confundiam: o exemplo clássico é o do pastor de ovelhas que teria sentido a necessidade de controlar o rebanho por meio da associação de cada animal a uma pedra, e, posteriormente, por praticidade, teria substituído as pedras por marcações em argila. O exemplo é icônico, mas pouco acurado: as noções primitivas de quantidade e de escrita devem ser muito mais antigas do que o pastoreio, perdendo-se na escuridão de tempos imemoriais. As fontes seguras para esse tipo de pesquisa são escassas e fragmentadas, e, nesse ponto, todos os estudos linguísticos e históricos são essencialmente especulativos.

Contudo, a ideia central de que a forma de contagem mais fácil é a da associação direta dos elementos de um conjunto (frutas, ovelhas, pessoas, etc.) a símbolos unitários invariáveis pré-estabelecidos (pedras, riscos, cortes, dedos, mãos, etc.) é opinião praticamente unânime entre todos os que se põem a pensar na questão.

Assim, é bastante coerente que essa ideia esteja no cerne de praticamente todos os sistemas numéricos subsequentes. No sistema romano, a premissa é praticamente a mesma: cada unidade vai ser representada por um símbolo unitário bem-definido, e esse símbolo será o símbolo “I”. Assim, “I” representa a existência de um elemento, e “II” representa a existência de dois elementos. Como não seria nada prático ficar repetindo esse símbolo para quantidades indefinidamente grandes, estipulou-se outro símbolo para representar um conjunto de cinco “I”s (ou seja, de cinco unidades, assim como os cinco dedos da mão). E o símbolo escolhido para tal foi o símbolo “V”. Analogamente se foram definindo símbolos para quantias estratégicas: “X” para dois “V”s (ou dez “I”s, o que é equivalente), “L” para cinco “X”s (ou dez “V”s, ou cinquenta “I”s), “C” para dois “L”s, e assim sucessivamente.

Acredita-se que o símbolo “I” tenha surgido em decorrência da similitude com o formato dos nossos dedos e da facilidade de escrevê-lo; “V”, do formato da mão; “X”, da junção de duas mãos (uma para cima e outra para baixo); “C”, da palavra centum, e “M”, da palavra mille, as formas latinas de “cem” e “mil”, respectivamente.

Dessa forma, a princípio, o número 4 era representado por “IIII”, e o número 7 podia tanto ser representado por “IIIIIII” quanto por “VII”, à conveniência de quem estava escrevendo. Por óbvio, todos preferiam a forma “VII” (senão nem teriam surgido com a ideia de inventar o símbolo “V”, para começo de conversa), e logo isso deixou de ser uma conveniência para se tornar uma regra. E, conforme as pessoas foram adquirindo praticidade com a notação em voga e com procedimentos aritméticos básicos (soma e subtração), perceberam que indicar a subtração de apenas uma unidade (o que equivale a indicar o antecessor de um número natural) é tremendamente eficaz para evitar repetições na escrita e aumentar a agilidade na confecção de registros, pois é mais rápido escrever apenas dois símbolos do que quatro símbolos para representar a mesma quantia. Em busca da economia na escrita, a forma mais fácil de representar essa subtração é indicando a unidade a ser subtraída à esquerda da quantidade da qual se está subtraindo. E assim surgiram as regras básicas da notação romana tais quais conhecemos hoje. Tudo de forma muito lógica, simples e intuitiva. Trata-se, afinal, de um fenômeno muito similar às atuais “notações científicas” que aprendemos no ensino médio (representar 0,00000012 por 1,2 x 10-7 ou 5.973.000.000.000 por 5,973 x 1012, por exemplo). Além do mais, assim como nós temos nossos algoritmos para realizar somas, multiplicações e divisões, também os romanos bem instruídos tinham seus atalhos e truques para fazer com mais velocidade contas como MMMCDXLIII + CCCXCII.

Apesar de hoje já não utilizarmos mais esse sistema de numeração para nenhuma finalidade propriamente matemática, os numerais romanos persistem em nossa cultura (tanto por amor à tradição quanto por certa aptidão ao embelezamento que lhes é inerente) nos relógios analógicos, nas referências a séculos e nas numerações de capítulos de livros. No caso dos relógios, aliás, é possível vislumbrar resquícios das antigas regras de formação dos numerais, pois na maior parte deles (inclusive no famoso Big Ben) encontra-se 4h representada por “IIII”, e não por “IV”, como hoje seria de se esperar pelas regras que conhecemos. Essa tradição decorre de Luís, o décimo quarto rei da França (que hoje é universalmente conhecido como Luís XIV, mas que, na verdade, preferia ser conhecido como Luís XIIII). O que ocorreu foi que Luís XIV, por um capricho seu, decretou uma lei para que todos os relógios exibissem “IIII”, e não “IV”, para indicar 4h. Além desse exemplo, existem outras construções numéricas inexistentes na Roma antiga que foram introduzidas por motivos estilísticos em épocas modernas: um romano nunca teria escrito "MCM" para representar 1900; ele teria escrito "MDCCCC".

Exemplo de relógio no estilo Luís XIV: note que utilizar “IIII” no lugar de “IV” favorece a simetria, pois faz com que quatro horários sejam representados apenas com “I”s, quatro utilizem “V”s e quatro utilizem “X”s, o que confere maior harmonia estética à peça.
Assim, verifica-se que as regras do sistema romano não são tão bizarras quanto nos parecem hoje. O que ocorre, apenas, é que ele não dispõe das facilidades que, séculos mais tarde, se descobriu no sistema indo-arábico de base 10 – facilidades essas que não foram descobertas do dia para a noite, mas, sim, após duro labor e inspiradas percepções de vários matemáticos ao longo dos tempos. Uma vez reconhecidas e comprovadas, no entanto, essas facilidades foram incorporadas com tamanha força na nossa cultura a ponto de darem a impressão de se tratarem de resultados espontaneamente intuitivos para todos. Para comprovar como essas propriedades facilitadoras do nosso sistema não são tão evidentes como imaginamos depois de décadas de condicionamento a elas, basta mencionar que Leonardo Fibonacci, considerado o primeiro grande matemático europeu da Idade Média, apesar de já utilizar esse sistema e de dele ser um forte defensor, ainda se valia de um intricado modelo de frações unitárias, comuns e sexagésimas para realizar certos cálculos de câmbio de moedas que, com o procedimento padrão atual, seriam extremamente simples, graças às vantagens à época ainda não descobertas da notação posicional para operação com frações.

Disso se extrai que, dentre todos os sistemas numéricos conhecidos em um dado período histórico, cada civilização, em geral, e cada matemático, em particular, utiliza aquele que lhe é mais conveniente para cada tipo de trabalho. Para a aritmética e a álgebra modernas, o sistema indo-arábico de base 10 parece ser o mais eficiente; para a computação, o sistema binário se revelou o melhor; para certos problemas envolvendo Teoria dos Números, às vezes é conveniente utilizar outras bases. Também é interessante constatar como vários resultados do Cálculo e da Análise Real podem ser obtidos por meio da curiosa teoria dos chamados “Números Surreais”, desenvolvida por volta de 1970 por John H. Conway e popularizada por Donald Knuth no livro “Surreal Numbers”, de 1974. E como saber se não existem notações, ainda a serem desenvolvidas, que nos levarão à descoberta de novos teoremas ou que farão com que resultados já conhecidos se tornem muito mais evidentes? E se existisse uma notação que fizesse com que o último teorema de Fermat ficasse de fácil demonstração? E então, que tal seria?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOYER, Carl B; MERZBACH, Uta C. História da matemática. São Paulo: Blucher, 2012.

CRILLI, Tony. 50 ideias de matemática que você precisa conhecer. São Paulo: Planeta, 2017.

ROQUE, Tatiana. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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