domingo, 5 de maio de 2019

MAIS ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O PAPEL DA INTUIÇÃO NA MATEMÁTICA

A importância da intuição no desenvolvimento do pensamento matemático do estudante, bem como na evolução da matemática como um todo, é um tema que me é muito caro. Mais de uma vez já falei sobre ele aqui no blog e sei que esta não vai ser nem a última nem a penúltima vez que o farei. Digo isso porque considero que o assunto é de tremenda relevância para todos aqueles que se põem a pensar a sério sobre como a matemática é ensinada e sobre o quanto isso influencia na compreensão do aluno acerca dos temas estudados, na facilidade com que ele vai manipular novas técnicas e absorver novos conceitos, na quantidade de prazer que ele vai extrair dos estudos e no quão longe ele conseguirá levar seus pensamentos. E isso tudo, é importante notar, são algumas das principais variáveis que determinaram, em última instância, a chance que teremos, enquanto comunidade, de fazer avançar a matemática e as ciências de um modo geral.

Em decorrência de um longo processo histórico cujos pontos mais notáveis são as preocupações acentuadas no início do século XX envolvendo os fundamentos, a consistência e a completude da aritmética, da álgebra e da geometria, a matemática está se tornando cada vez mais rigorosa e formal. Se isso por um lado é indispensável para que tenhamos a segurança de estarmos construindo um conhecimento sólido que não depende em nada de interpretações pessoais (as quais são flutuantes e conflitantes), por outro induz ao perigo nada desprezível de o ensino passar a ser tratado com um distanciamento tão grande da realidade imediata que acabe desestimulando o estudante ou fazendo com que o futuro pesquisador não se vincule com os significados mais profundos daquilo com que trabalha, desenvolvendo tão somente a vã habilidade de, como uma máquina, manipular signos abstratos para os quais ele nunca foi instruído a atribuir sentido algum. Esse perigo, por mais que não esteja tão saliente nos dias de hoje, é crescente e visivelmente real, de modo que devemos estar em constante alerta para evitá-lo, buscando sempre promover cérebros capazes de realizar associações e inter-relações entre as várias áreas da matemática, ou, o que é ainda mais desejável, entre as várias áreas do conhecimento.

Os maiores matemáticos da história são sempre enfáticos quando atribuem seus sucessos em primeiro lugar à intuição e à imaginação, e só depois às formalidades com as quais sedimentaram suas ideias no papel (Poincaré disse: "É pela lógica que nós provamos, mas é pela intuição que descobrimos. Saber criticar é bom, mas saber criar é melhor"; Leibniz registrou: "De minha parte, só cultivei as matemáticas porque encontrei nelas vestígios da arte de inventar em geral"). Isso, somado ao fato de que esses mesmos matemáticos sempre mencionam que só atingiram tão elevado grau de sofisticação imaginativa após anos de prática com elementos formais, torna óbvio que intuição e formalidade não são categorias que se excluem, mas, sim, fatores que se complementam e se alimentam em reciprocidade.

Há de se sublinhar que a intuição, em qualquer campo da existência humana, é resultado de educação e experiência, e a inspiração que conduz o matemático ao êxito nunca ganha forma sem muito trabalho e transpiração (é como disse Picasso: "a inspiração existe, mas tem que te encontrar trabalhando"). Quanto mais familiarizada a pessoa está com um sistema qualquer (no nosso caso, com os sistemas axiomáticos e os métodos dedutivos), mais facilidade ela terá para prever com naturalidade e precisão o comportamento desse sistema, para lidar com ele sem esforço e para intuir resultados de difícil visualização na lógica formal. Nessa esteira, quanto maiores forem a familiaridade com o sistema e a liberdade imaginativa que se conceder à mente, mais todo o trabalho fluirá sem ruídos, num benéfico processo de filtragem subconsciente, chegando ao ponto de fazer até mesmo com que a pessoa não precise nem sequer pensar ou perder tempo gerenciando os procedimentos que utiliza, mas tão somente canalizar suas energias para as descobertas a que se dedica. Assim, a tão-necessária disciplina para os estudos e para a pesquisa surge de modo espontâneo e maximiza sem esforço as potencialidades de cada indivíduo.

Tendo isso em mente e percebendo que pouco há de mais desastroso para a captação de talentos para a matemática do que aterrar o aprendiz com exageros de simbolismos e rigorismos que podem lhe ser apresentados em etapas posteriores, quando houver maior maturidade após o deslumbre inicial da contemplação de certos resultados teóricos, é sensato concluir que uma introdução à matemática, mesmo em nível universitário, deve se dar como que num jogo lúdico, com grande valorização de atividades guiadas que façam com que emerjam tão espontaneamente quanto possível as noções mais fundamentais da matemática (demonstrações pela contrapositiva, provas por absurdo, visualização mental do comportamento de certas funções arquetípicas, senso de proporção espacial ao lidar com vetores, etc.). Isso pode ser feito sem grandes dificuldades por meio de boas aulas de geometria, teoria dos números e cálculo, onde, pouco a pouco, os detalhes mais técnicos vão sendo apresentados à medida que o próprio estudante perceba suas necessidades. Fazer diferente importará em assustar noviços e fazer com que mentes brilhantes em potencial se esquivem para cursos que, por tratarem de objetos mais "palpáveis", acabem se tornando imerecidamente mais sedutores.

Isso não quer dizer, contudo, que o professor deva maquiar as dificuldades inerentes à essência da matéria com truques baratos que obscureçam a ausência de uma adequada progressão lógica. Em qualquer ciência, em especial na matemática, relações precisam ser justificadas, propriedades e teoremas precisam ser demonstrados. E ensino pela metade não é ensino, é enganação.

Outro ponto a se considerar é que o professor deve transmitir o conhecimento já consolidado como se o estivesse descobrindo pela primeira vez junto com os alunos, embora seja aconselhável que o faça sem causar fantasias ingênuas e sem deixar de prestar respeito aos pensadores do passado. Isso faz com que a sensação de maravilhamento incuta no coração do estudante o gosto pela investigação e a vontade da descoberta, além do hábito de pensar matematicamente sem se restringir às versões minimalisticamente sistematizadas das apostilas tradicionais. Pois o fato que pouca gente assume é que nenhum pesquisador de matemática pensa da mesma maneira com que os resultados são apresentados no livros e artigos acadêmicos, assim como nenhum literato sonha em versos já lapidados e compositores não concebem de uma só vez músicas inteiramente prontas, mas apenas melodias desprovidas de detalhes complexos ou embriões de ideias nem sempre muito claras sobre as quais trabalhar até se chegar ao resultado final.

No caso do compositor, procedimentos muito análogos ao cálculo numérico poderiam levá-lo à composição de uma boa sinfonia, apenas estudando as claves e métricas e compassos. Mas o que distingue o músico talentoso de uma mera máquina geradora de sons ritmados é o "espírito": a capacidade de absorver a teoria musical de tal modo que esta se entranhe como algo quase que inato em sua alma,  enchendo-o de lampejos de genialidade e tornando-o capaz de criar músicas mais e mais sublimes por pura intuição (a qual, é claro, depois será refinada e incrementada pela técnica). Isso não significa que a teoria não tenha contribuído para a criação da música; muito pelo contrário, significa que o estudo da teoria foi tão bem-sucedido que, sem precisar de esforço, o músico foi muito além do que teria conseguido sequer imaginar sem a teoria que lhe aguçou o senso rítmico-melódico e a sensibilidade artística.

O bom matemático, assim como o bom músico, o bom poeta, o bom romancista, o bom pintor e qualquer pessoa que se sinta de fato vinculada com alguma arte, ciência ou ofício, naturalmente será atraído para reflexões dessa natureza.

Há um exemplo que é bastante eloquente: certa vez, discutindo a relação às vezes superestimada, às vezes subestimada dos estudos teóricos da linguagem na produção de obras de arte, o grande filósofo da comunicação Umberto Eco (não por acaso, também um romancista) refletiu que "assim como a espontaneidade e a inventividade nutrem a reflexão científica, também a reflexão científica pode potencializar a invenção. Ninguém virou escritor estudando linguística, mas os grandes escritores estudam os problemas da língua que usam".

Na sequência dessa reflexão, Eco conta a seguinte parábola: 

"Disse o gramático ao barqueiro: 'sabes gramática?' E, quando este respondeu que não, disse-lhe: 'perdeste a metade da tua vida'.

Disse o barqueiro ao gramático, quando o barco virou: 'sabes nadar?' E, quando ele respondeu que não, disse-lhe: 'então perdeste toda a tua vida'.

Mas o que existiria de melhor do que um gramático que soubesse nadar e um barqueiro que conhecesse gramática?"

E, pergunto eu, o que há de melhor do que um formalista que sabe imaginar e um matemático sonhador que sabe pôr no papel de forma rigorosa os seus mais mirabolantes devaneios?

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