O trecho abaixo é minha tradução para uma das passagens mais formidáveis do livro "Números Surreais: como dois ex-estudantes conheceram a matemática pura e encontraram a felicidade completa", de Donald E. Knuth. A noveleta, considerada pelo próprio autor como um livro anti-didático, apresenta a teoria de John Conway sobre os chamados "números surreais" através da visão de um casal de pesquisadores que, pouco a pouco, sozinhos, vão realizando descobertas sobre essa abordagem não-tradicional de pensar os números.
No começo da história, Alice (A) e Bill (B) se deparam com uma pedra na qual estão gravadas algumas inscrições incomuns, em uma linguagem muito antiga, indicando regras de formação para os números, e essas regras são bem diferentes daquelas com as quais estamos acostumados. Intrigados, esses personagens se põem a desvendar os mistérios daquelas regras estranhas, procurando compreender seus significados. O que começa como uma simples curiosidade vai ganhando forma e consistência, e ao longo do livro os personagens, entusiasmando-se ao vivenciar pela primeira vez a grande beleza da pesquisa na matemática pura, vão fazendo descobertas inacreditáveis sobre o comportamento dos "números surreais".
Em certo capítulo, quando o casal de pesquisadores já está completamente absorvido pelos encantamentos dessa "nova" matemática que eles estão desbravando, surge um diálogo que expressa muito bem as ambivalências conflituosas que existem entre a pesquisa inventiva na matemática e a forma padrão com que as matérias são ensinadas nas escolas.
Creio que todas as pessoas que já estudaram matemática, em especial os estudantes universitários dos cursos de ciências exatas, e principalmente os professores de espírito criativo, vão se identificar muito com o diálogo abaixo.
DIÁLOGO SOBRE A INVENÇÃO MATEMÁTICA E O ESTUDO DA MATEMÁTICA – por Donald E. Knuth
Tradução de Gustavo Lopes Perosini
B: Fico me perguntando por que a matemática está tão estimulante agora, se antes ela era tão maçante na escola. Você se lembra das aulas do professor Landau? Elas me aborreciam pra valer: lema, teorema, prova, observação, corolário; lema, teorema, prova... Uma chatice total.
A: Sim, eu lembro que era bem difícil permanecer acordada. Mas, pense comigo, será que as nossas próprias descobertas, por mais belas que sejam, não vão ser ensinadas do mesmo jeito?
B: É verdade. Eu já estou sentindo essa necessidade louca de correr para um sala de aula e apresentar nossos resultados: lema, teorema, prova, observação, corolário. Eu iria apresentar tudo de forma tão habilidosa que ninguém seria capaz de adivinhar como é que chegamos a esses resultados, e todo mundo ficaria super impressionado.
A: Ou cansado...
B: Sim, aí é que está o problema. Eu acho que o entusiasmo e a beleza surgem na descoberta, e não em simplesmente ficar ouvindo.
A: Mas nossos resultados são belos por si só. Eu me divertia ouvindo suas descobertas tanto quanto me divertia fazendo as minhas. Então qual é a diferença?
B: Você está certa. Eu também apreciava muito os progressos que você ia fazendo em cada problema, mas isso porque eu mesmo já havia me debruçado sobre esses mesmos problemas antes.
A: Então as matérias costumavam ser chatas na escola porque a gente não se sentia envolvida de verdade; nós só estávamos sendo instruídos a absorver algo que alguma outra pessoa fez antes da gente, e, até onde podíamos saber, não havia nada de especial naquilo tudo.
B: De agora em diante, sempre que eu for ler um livro de matemática, antes de olhar para as soluções, eu vou tentar imaginar por mim mesmo como é que tudo aquilo foi elaborado. Mesmo se eu não conseguir resolver os problemas sozinho, acredito que isso vá fazer com que eu enxergue melhor a beleza das provas apresentadas.
A: Eu acho que, mais do que isso, a gente também tem que tentar adivinhar quais outros teoremas estão por vir; ou pelo menos pensar um pouco em como e por que alguém teria se dado ao trabalho de provar esses teoremas, para começo de conversa; quero dizer, pensar em por que esses teoremas têm alguma importância. Temos de nos colocar na pele do descobridor. A parte criativa é realmente mais interessante do que a parte dedutiva. Ao invés de nos concentrarmos apenas em encontrar boas respostas para as questões, é mais importante aprender como encontrar boas questões!
B: Você falou tudo. Eu queria que nossos professores nos dessem problemas do tipo "encontre algo interessante sobre x", e não "prove que x é verdade".
A: Exatamente. Mas os professores são tão conservadores... Eles temem assustar os estudantes esforçados que, mecânica e obedientemente, fazem toda a tarefa de casa. Além disso, eles não iam gostar do trabalho extra de ter que avaliar respostas para perguntas não-diretas.
A maneira tradicional é deixar de lado todos os aspectos criativos da matemática até a última etapa da universidade. Por dezessete anos ou mais, os estudantes são moldados para se adequar à estrutura de provas e exames; então, de repente, depois de terem passado por uma quantidade suficiente de testes na graduação, eles são obrigados a desenvolver algo original.
B: De fato. E eu duvido que muitos dos estudantes realmente originais tenham resistido por tanto tempo.
A: Ah, eu não sei. Talvez eles sejam originais o bastante para encontrar suas próprias maneiras de aproveitar o sistema. Como, por exemplo, colocando-se no lugar dos pesquisadores, do jeito que a gente está dizendo agora. Isso faz com que os cursos universitários tradicionais se tornem toleráveis, talvez até divertidos.
B: Você sempre foi uma otimista, Alice. Mas, veja, já parou de chover. Vamos lá estudar aquela pedra e voltar ao trabalho.
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