sábado, 29 de junho de 2019

EM DEFESA DO RIGOR: linguagem e lucidez

É notório, tanto nos meus textos de caráter filosófico quanto na minha conduta cotidiana, que sou um obstinado defensor da valorização da intuição e da imaginação na prática da ciência e em seu ensino. Longe de prejudicarem a visão de mundo dos estudantes, creio que ludicidade bem instruída, associações inusitadas e informalidades úteis são meios extremamente eficazes para aumentar a clareza das observações dos aprendizes e de a uma só vez tornar mais amplo o domínio de seus pensamentos e mais acuradas as conclusões de seus raciocínios. Para mim, pensando não apenas como professor, mas também como o eterno estudante que sou, recursos educacionais que apelam aos sentidos, sobretudo à visão, devem ser utilizados sempre que possível, e interpretações geométricas até mesmo dos mais abstratos teoremas da álgebra são sempre bem-vindas. Contudo, sou enfático ao dizer que, enquanto a sofisticação do pensamento intuitivo é importante, a exigência do rigor formal é indispensável, sobretudo na matemática.

Consideremos, portanto, algumas reflexões sobre o porquê de certo grau de formalismo ser requisito imperativo para garantir a consistência da ciência, em especial aquele formalismo que deve existir na maneira pela qual registramos nossas observações acerca dos objetos de estudos. Nesse sentido, pensar no problema da rigorosidade na ciência é, antes de tudo, pensar no problema da construção e dos usos da linguagem.

Começo o pensamento com um exemplo curioso: logo no preâmbulo do “Tratado da Esfera”, obra de 1230 que foi usada como livro-texto por astrônomos, cosmógrafos e navegadores durante quase cinco séculos ao longo da Idade Média e início da Idade Moderna, o autor, Johannes de Sacrobosco, justifica sua escolha de ter escrito a obra em linguagem popular, e não em latim, como era de costume para os eruditos da época, alegando que isso levaria o conhecimento da ciência para um número maior de pessoas e que todos os homens, mesmo aqueles não letrados em latim, deveriam ter algum conhecimento quanto às descobertas da astronomia. Em adição a esse argumento, Sacrobosco diz que “a ciência não tem linguagem própria”, e justifica que isso se dá porque “ciência não é outra coisa senão um conhecimento habituado no entendimento, o qual se adquiriu por demonstração, e demonstração é tudo aquilo que nos faz saber. Ademais, por qualquer linguagem que seja é possível a ciência se fazer entender. E é certo que os primeiros escritores em qualquer ciência não foram buscar nomes fora de sua língua materna para dar às coisas de que tratavam”. De acordo com Sacrobosco, é difícil entender de onde provinha o receio dos pensadores da época de transladar em linguagem vulgar as obras científicas, senão da vaidade que os faziam crer que, assim agindo, acrescentavam algo a mais em suas autoridades. Para o autor, quanto mais comum e universal for um bem que se faça, tanto mais ele será excelente, de modo que levar o conhecimento para além dos falantes do latim era o mais correto a se fazer.

A grande ironia, vendo com os olhos de hoje, é que, justamente nesta obra em cujos primeiros parágrafos já encontramos tamanha sensatez – neste livro que por tanto tempo foi adotado nas principais universidades europeias e cuja influência se mostrou significativa para vários pilotos que fizeram grandes descobrimentos marítimos –, é possível encontrar uma “prova” de que a Terra é o centro do universo...

Ora, uma tal “prova” ou “demonstração” (que hoje acreditamos saber ser falsa) não teria sido aceita por tanto tempo, inclusive por pessoas de elevado grau de inteligência e instrução, se não tivesse ao menos a aparência de ser extremamente coerente. O defeito certamente não estava visível na demonstração em si (pois caso contrário ela teria sido desacreditada quando muito em poucas décadas), de modo que é seguro concluir que o defeito estava na linguagem dúbia e enganosa que as pessoas da época inadvertidamente usavam para expressar a demonstração e para pensar na questão a que se propunham. Para colocar de uma forma mais precisa, o defeito estava no sistema de crenças (por vezes inconscientes) que serviam como fundamento das racionalidades dos pensadores de então, sistema este que, em qualquer época, é amparado menos por indícios empíricos do que pela habitualidade linguístico-cultural de cada pessoa, em particular, e de cada comunidade (centro de pesquisa, universidade, escola filosófica, região, país, etc.), em geral.

É o velho adágio que não cansamos de repetir: “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. Deixar de ter símbolos com os quais expressar certas nuances da realidade aos poucos faz com que passemos a acreditar que essas nuances não existem.

O ponto que quero destacar é o seguinte: é certo que as verdades do mundo, as quais buscamos descobrir e compreender por meio da ciência, são fatos verdadeiros a despeito da linguagem que utilizamos para representá-los. O teorema de Pitágoras permanecesse válido quer utilizemos numerais arábicos, quer utilizemos numerais romanos, e as órbitas que os planetas descrevem ao redor do Sol não vão modificar suas trajetórias se deixarmos de chamá-las de elípticas para denominá-las por uma outra palavra qualquer. Ocorre que, apesar dessa indiferença dos fatos do mundo às palavras (a não ser que tratemos dos fatos linguísticos ou, mais amplamente, dos fatos que envolvam subjetividades sujeitas à influência da linguagem – como ocorre com os fatos psicológicos e sociais, por exemplo), apesar da imutabilidade das verdades em razão da linguagem adotada, é perceptível que existem linguagens mais adequadas do que outras para o trato com cada assunto: é difícil pensar em questões geométricas utilizando apenas palavras, sem certas notações específicas, ou trabalhar com aritmética sem recorrer à linguagem dos símbolos numéricos; do mesmo modo, ninguém escolheria se armar com a complexa linguagem simbólica da lógica formal só para passar uma receita de bolo ou então, por um capricho qualquer, abandonar a linguagem escrita para tratar dos problemas do mundo jurídico por meio de esquemas gráficos e diagramas, como se faz quando se estuda cartografia, engenharia ou arquitetura.

Por esse raciocínio, não temos escapatória senão considerar que existem linguagens que são menos suscetíveis a nos permitir cometer erros – ou mesmo a deixar de perceber verdades – do que outras, e são essas linguagens que devemos buscar utilizar (ou até criar, quando necessário) para lidar com cada tipo de problema. Além de uma necessária consistência intrínseca, é justamente essa adequabilidade da linguagem que garantirá relativa solidez às descobertas que fizermos e lucidez às inferências que construirmos, e isso em qualquer área que se possa imaginar.

Uma linguagem inadequada pode nos fazer raciocinar de forma errada, ou, o que talvez seja até pior, a nos deixar eternamente proferindo verdades irrelevantes. Pense, por exemplo, no caso daquelas pessoas que desenvolvem uma fixação excessiva por determinado tema e que só conseguem enxergar o mundo pelas lentes desse único tema (como acontece com alguns leitores de psicanálise para os quais todos os comportamentos humanos se resumem a pulsões sexuais e todas as explicações dos problemas da alma decorrem de traumas de infância escondidos nas camadas mais subterrâneas da consciência, ou então como sucede com inúmeros supostos militantes ideológicos que passam a vida inteira acreditando defender uma causa específica quando nunca, em momento algum, percebem que na realidade suas ações em nada contribuíram para essa causa e que, se agissem de outra maneira – de uma maneira às vezes até mais simples –, poderiam obter resultados muito mais produtivos).

As armadilhas das linguagens são muitas. Algumas vezes estamos com a razão e a linguagem distorce o pensamento, fazendo-nos proferir o oposto daquilo que pretendíamos; em outras, estamos errados e soamos como se estivéssemos certos. Muitas vezes, como num sonho particularmente vívido, temos a intuição de uma verdade profunda e nossa mente chega a poucos milímetros de alcançar uma descoberta importantíssima, mas, quando estamos prestes a agarrar o fantasma da abstração e despertamos para a realidade prática lutando para arrastá-lo conosco e dar-lhe materialidade, descobrimos, para nosso desespero, que não dispomos das palavras adequadas para apalpar os contornos dessa verdade ou para comunicar aos demais a concretude da descoberta, deixando-nos impotentes a vê-las se evaporar e escapar por entre nossos dedos frágeis. Em outros casos é o oposto que acontece, e as próprias palavras nos levam a registrar verdades que, embora grandiosas, nem sequer compreendemos. Isso ocorre com frequência nas ciências abstratas formais: em virtude de uma linguagem seguramente consistente e com regras bem-definidas, em certos ramos da matemática pura, por exemplo, é possível trabalhar sem nem mesmo saber o que cada símbolo significa. Isso pode parecer estranho e indesejável, mas é assim que vários avanços são feitos, desde os tempos de Pitágoras até as mais modernas teorias contemporâneas. Nesses casos, a interpretação e a visualização global dos resultados surgem em momentos posteriores, não raras vezes com gerações de distância da descoberta original. Foi esse tipo de fenômeno, aliás, que fez Euler afirmar que às vezes ele tinha a impressão de que sua caneta sabia mais matemática do que ele próprio.

“A linguagem serve não apenas para expressar pensamentos, mas também para tornar possíveis pensamentos que não existiriam sem ela”, registrou Bertrand Russell na sua monumental obra “Conhecimento Humano: seus escopos, seus limites”. Analisando mais profundamente a relação entre linguagem e os fatos do mundo, assim dá seguimento ao raciocínio o grande pensador britânico: “Às vezes se diz que não pode haver pensamento sem linguagem, mas não consigo concordar com essa opinião: penso que pode haver pensamento e mesmo crenças verdadeiras e falsas sem linguagem. Mas não se pode negar que todos os pensamentos razoavelmente elaborados exigem palavras. Posso saber, em certo sentido, que tenho cinco dedos, mesmo não conhecendo a palavra ‘cinco’. Mas, a menos que tenha adquirido a linguagem aritmética, não posso saber que a população de Londres conta com cerca de 8 milhões de pessoas, nem formular qualquer pensamento que corresponda minimamente ao que diz a sentença: ‘a razão da circunferência de um círculo pelo seu diâmetro é de aproximadamente 3,1415926’. A linguagem, uma vez evoluída, ganha um tipo de autonomia: podemos saber, especialmente na matemática, que uma sentença afirma algo verdadeiro, embora o que ela afirme seja complexo demais para ser compreendido até mesmo pelas mentes mais brilhantes”.

Outra observação interessante feita por Bertrand Russell é que, apesar de todos os problemas teóricos que os filósofos da linguagem têm de enfrentar ao perceber que muitas vezes utilizamos certas linguagens apenas nos valendo de seus recursos estritamente formais, sem nos atermos aos significados, é que, até certo ponto, tal tratamento apresenta grandes vantagens, pois “a lógica e a matemática não teriam prosperado como prosperaram se lógicos e matemáticos ficassem se lembrando a todo momento que os símbolos devem significar alguma coisa. ‘Arte pela arte’ é uma máxima que encontra guarida tanto na lógica quanto na pintura (embora não expresse toda a verdade em nenhum dos casos)”.

O cerne das nossas constatações, aqui, é, obviamente, a influência inevitável dos sistemas formais e modelos de apreensão intelectual na construção do conhecimento. A capacidade cognitiva limitada dos seres humanos nos restringe a ter entendimento finito das verdades do universo, de onde decorre a necessidade de nos apoiarmos em tais sistemas e modelos (que também são limitados). O universo das verdades, no entanto, não é limitado, mas potencialmente infinito, de sorte que não há prosperidade intelectual duradoura que não exija multiplicidade integrada e inovação contínua nos modelos formais de interpretação e valoração da realidade.

Em síntese, minha conclusão é a seguinte: o pensamento, para voar mais alto e contemplar panoramas mais amplos, não deve se restringir a nenhum sistema formal. Contudo, ele só terá energia e experiência suficientes para se elevar a alturas realmente majestosas se for capaz de, disciplinadamente, instruir-se por diversos sistemas formais harmonicamente inter-associados.

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