sábado, 21 de março de 2020

CONTO: O QUE É ESPERADO DE NÓS, de Ted Chiang

Ted Chiang, um dos mais talentosos escritores de ficção científica da contemporaneidade, é o autor da coleção "História da sua Vida e outros contos", cuja narrativa que dá título ao livro originou o  roteiro do filme A Chegada (The Arrival, 2016).

A ficção de Ted Chiang, marcada pela simplicidade acessível da escrita envolvendo grande profundidade de conteúdo, venceu, quatro vezes cada um, os três maiores prêmios da ficção científica: Hugo Awards, Nebula Awards e Locus Awards. Figura, ao lado de autores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, Stanislaw Lem e Ray Bradbury, como um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos.

Seu segundo volume de contos, ainda não publicado no Brasil, se chama Exhalation, e foi dele que extraí a história curta "What's Expected of Us": uma pequena obra-prima minimalista da ficção especulativa de caráter filosófico.

Ao final do texto, para o leitor mais interessado, incluí alguns extras, como comentários do autor sobre a origem deste conto e mais algumas curiosidades diversas (além do link para outra história do Ted Chiang).


O QUE É ESPERADO DE NÓS – Ted Chiang
Tradução de Gustavo Lopes Perosini

Isto é um aviso. Por favor, leia com atenção.

No momento em que se encontram, é provável que vocês já tenham visto um Preditador; milhões deles já terão sido vendidos quando vocês estiverem lendo estas palavras. Para aqueles que ainda não viram um, ele é um dispositivo pequeno, parecido com um desses controles remotos que usamos no carro para abrir o portão. Seus únicos componentes são um botão simples e uma luz de LED verde. A luz se acende se você aperta o botão. Mais especificamente, a luz se acende um segundo antes de você apertar o botão.

A maior parte das pessoas diz que, quando experimentaram o Preditador pela primeira vez, a sensação foi a de estar jogando um jogo estranho, um jogo no qual o objetivo é apertar o botão depois de ver a luz verde, algo muito fácil de se fazer. Contudo, quando você tenta quebrar as regras, você descobre que você não consegue. Se você tenta apertar o botão sem ver a luz se acendendo, o sinal luminoso aparece de imediato, e, não importa o quão rápido você seja, você nunca aperta o botão até que um segundo tenha se passado. Se você espera pelo sinal luminoso com a intenção de deixar de apertar o botão, o sinal nunca aparece. Independente do que você faça, a luz sempre precede o aperto no botão. Não há como enganar o Preditador.

O coração de cada Preditador é um circuito com um delay temporal negativo; ele envia um sinal de volta no tempo. As completas implicações da tecnologia vão se tornar aparentes em breve, quando delays negativos de mais de um segundo forem alcançados, mas não é disso que este aviso se trata. O problema imediato é que os Preditadores demonstram que não existe aquilo que comumente chamamos de livre-arbítrio.

Sempre houve argumentos mostrando que o livre-arbítrio é uma ilusão, alguns baseados em teorias físicas complexas, outros baseados em pura lógica. A maioria das pessoas concorda que esses argumentos são irrefutáveis, mas ninguém realmente chegou a aceitar a conclusão. A experiência de ter livre-arbítrio é poderosa demais para que um argumento a refute. O que faltava era uma demonstração, e é isso que o Preditador proporciona.

Tipicamente uma pessoa brinca com o Preditador de modo compulsivo por alguns dias, mostrando a amigos e tentando vários esquemas para ludibriar o aparelho. Em seguida, a pessoa pode até aparentar perder o interesse no jogo, mas ninguém consegue esquecer o que ele significa; ao longo das semanas seguintes, as implicações de um futuro imutável se tornam impossíveis de ignorar. Algumas pessoas, percebendo que suas escolhas não importam, deixam de fazê-las de uma vez por todas, recusando-se a tomar qualquer tipo de decisão. Similares a uma legião de “Bartleby, o escriturário”, elas não mais assumem ações espontâneas. Eventualmente, um terço daqueles que brincam com Preditadores tem de ser hospitalizados por deixar de se alimentar. O estado final é mutismo acinético, uma espécie de coma acordado. Eles percebem acontecimentos ao redor com seus olhos e mudam de posição ocasionalmente, mas nada mais do que isso. A habilidade de se locomover se mantém, mas a motivação se esvai.

Antes de as pessoas começarem a brincar com os Preditadores, mutismo acinético era uma patologia rara, resultando apenas de danos cerebrais na região do córtex cingulado anterior. Agora essa condição se espalha como uma praga cognitiva. Antigamente, as pessoas costumavam especular quanto a um pensamento capaz de destruir o pensador, algum tipo de horror lovecraftiano indizível ou uma sentença de Gödel que gere pane em todo o sistema lógico humano, fazendo-o ruir. O que acontece é que os fatos recentes revelaram que esse pensamento desabilitador é um com o qual todos nós já nos deparamos alguma vez: a ideia de que o livre-arbítrio não existe. Ele só não era nocivo até que você acreditasse nele.

Médicos tentam falar com pacientes enquanto eles ainda respondem a conversações. “Todos nós vivíamos vidas felizes e ativas antes”, eles argumentam, “e mesmo naquela época nós também não tínhamos livre-arbítrio. Por que as coisas deveriam mudar agora? Nenhuma ação que você fez no mês passado foi realizada com maior liberdade do que alguma que você tenha feito hoje. Você pode continuar se comportando da mesma maneira”, um médico poderia dizer. Os pacientes invariavelmente respondem: “Mas agora eu sei”. E alguns deles nunca mais dizem palavra alguma.

Alguns vão inferir que o fato de o Preditador causar essa mudança de comportamento significa que nós possuímos, sim, livre-arbítrio. Um autômato não pode ser desencorajado, somente alguém dotado de liberdade de escolha pode. O fato de que alguns indivíduos caem em mutismo acinético enquanto outros não só enfatiza a importância do ato de se fazer uma escolha. 

Infelizmente, tal raciocínio é falho; toda forma de comportamento é compatível com o determinismo. Um sistema dinâmico pode entrar em uma zona de atração e terminar em um ponto fixo enquanto outro fique exibindo comportamento caótico indefinidamente, embora ambos sejam completamente determinísticos.

Estou transmitindo este aviso para vocês de apenas um ano na frente em seu futuro; esta é a primeira mensagem longa recebida de quando circuitos com delay negativo de maior alcance foram utilizados para construir dispositivos de comunicação. Outras mensagens a seguirão, relatando outros problemas. Minha mensagem para vocês é a seguinte: finjam que vocês têm livre-arbítrio. É essencial que vocês ajam como se suas decisões importassem, ainda que elas não importem. A realidade não é importante; o que é importante é a sua convicção, e acreditar na mentira é a única forma de evitar o coma acordado. A civilização agora depende do autoengano. Talvez ela sempre tenha dependido.

E, apesar disso, eu sei que, como o livre-arbítrio é uma ilusão, já está predeterminado quem vai cair em mutismo acinético e quem não vai. Não há nada que ninguém possa fazer; você não pode escolher o efeito que o Preditador terá sobre você. Alguns de vocês sucumbirão e outros não, e eu lhes enviar este aviso não vai alterar em nada as proporções. Então por que eu o enviei?

Porque eu não tive escolha.


NOTA DO AUTOR SOBRE A HISTÓRIA

Existe um episódio de Monty Python sobre uma piada que é tão engraçada que qualquer pessoa que a ouça ri tanto que chega a morrer. Esse é um exemplo de um tropo antigo que adquiriu o nome de “the motif of harmful sensation” (“o tema da sensação nociva”): a ideia de que você pode morrer simplesmente por ouvir ou ver algo; ou, dependendo da situação, por compreender algo. No episódio de Monty Python, falantes da língua inglesa podiam recitar em segurança a versão germânica da piada, contanto que não entendessem o que estavam pronunciando.

Muitas versões desse tropo envolvem elementos sobrenaturais; por exemplo, a ficção de horror frequentemente lida com livros amaldiçoados que levam as pessoas à loucura. Eu estava refletindo sobre se uma versão não-sobrenatural poderia ser possível, e então me ocorreu que um argumento verdadeiramente convincente de que a vida é sem sentido poderia ser um bom candidato. Não seria algo que funcionaria de modo instantâneo; o argumento levaria tempo para fazer a ficha cair, mas isso só significa que sua disseminação aumentaria mais e mais conforme as pessoas o repetissem umas às outras enquanto permaneciam meditando sobre ele.

A salvaguarda contra essa premissa, é claro, é a de que mesmo um argumento perfeito não seria capaz de convencer todas as pessoas que o ouvissem. Argumentos são abstratos demais para influenciar certas pessoas. Uma demonstração física, por outro lado, seria muito mais efetiva.


NOTA DO TRADUTOR SOBRE A OBRA DE TED CHIANG

Os escritos de Ted Chiang, sem exceção, abordam, de modo lúdico e plenamente acessível, temas usualmente tidos como complexos. Com a leveza de quem escreve uma fábula infantil, mas sem perder o rigor e nunca duvidando da capacidade intelectual de quem o lê, Ted Chiang trata, com riqueza de inter-relações e um brilhantismo único de insights transformadores, sobre temas como: racionalidade e livre-arbítrio; limites do conhecimento humano e da consciência; influências da linguagem no funcionamento da mente; harmonia entre ciência, religião, ética e moralidade; conhecimento científico como fonte de iluminação para a condição humana; possibilidade de uma ficção científica não-distópica; matemática como ampliação da nossa experiência no mundo; desafios sociais envolvendo problemas de linguagem; entre tantos outros assuntos de tremenda relevância para tornar mais clara nossa compreensão da realidade e para aumentar nossa sensibilidade humanista, alimentando nossa empatia. Extrai-se de sua obra que, para ele, a bondade só se concretiza de modo sustentável por meio de empenho racional e material. 

Talvez em razão disso, Chiang busca construir histórias com forte conteúdo filosófico positivo, mas não ingênuo. Em entrevista, ele explicou certa vez que "a ficção científica é muito boa para realizar experimentos mentais. Os filósofos com frequência propõem experimentos mentais [como o famoso dilema do trem, por exemplo], descrevendo cenários hipotéticos para ilustrar questões filosóficas. Mas, quando os filósofos apresentam esse tipo de experimento, tudo fica parecendo abstrato demais. A ficção científica proporciona que os leitores sintam o impacto em um nível emocional". 


EXTRAS 

EXTRA 1: Quanto à dicotomia (aparente ou não) entre livre-arbítrio vs. determinismo, recomendo ao leitor que leia sobre as teorias do compatibilismo, que, a meu ver, são as que mais se aproximam de estarem corretas. Outra sugestão de leitura, sobre tema similar, é o conto “The Merchant and the Alchemist’s Gate”, do próprio Ted Chiang, que é uma das minhas histórias favoritas de todos os tempos e lugares.
EXTRA 2: Lista de alguns exemplos de “motif of harmful sensation” na cultura popular. (A lista contém apenas alguns exemplares de que eu me lembrei na hora, não sendo, nem tencionando ser, minimamente completa).

  • LITERATURA:

OS MITOS DE CTHULHU (praticamente todos os contos), de H. P. Lovecraft: o Necronomicon, o Livro dos Mortos, escrito pelo árabe louco Abdul Alhazred, é uma obra proibida capaz de levar o leitor à loucura. Muitos dos “Old Ones” das histórias têm propriedades similares;

GRAÇA INFINITA (Infinite Jest), de David Foster Wallace: um dos personagens é um cientista óptico que se torna cineasta e acaba produzindo um misterioso filme que, pela alta voltagem de entretenimento, leva seus espectadores à morte;

O ALEPH (El Aleph), de Jorge Luis Borges: no conto, há uma moeda que causa obsessão e loucura àqueles que olham para ela. A história também trata, de modo surpreendente, do conceito matemático de cardinalidade de conjuntos infinitos.

  • CINEMA:

O CHAMADO (The Ring / Ringu): uma fita de vídeo que amaldiçoa a pessoa que a assistiu e a faz ser perseguida pelo espírito da Samara (ou Sadako, a depender da versão), vindo a morrer de forma grotesca em sete dias;

HELLRAISER – Renascido do Inferno (Hellraiser): uma relíquia em forma de cubo, conhecida como Configuração do Prazer (ou Caixa de Lemarchand), desperta incontida curiosidade mórbida em quem tem acesso a ele, podendo abrir as portas dimensionais para um reino de prazeres sensuais inimagináveis, mas exigindo, em troca, a alma do usuário.

PI (π): um matemático é morto por um derrame induzido pelo estudo de padrões secretos no número pi. Além disso, um grupo de Cabalistas acredita que os números descobertos pelo matemático podem ser o nome verdadeiro de Deus, e que ninguém deve lê-lo em voz alta, sob pena de ser ferido.

PESADELO MORTAL (Cigarette Burns), episódio do John Carpenter para a série Masters of Horror: o proprietário de um pequeno cinema é contratado para procurar a última cópia existente de um filme chamado La Fin Absolue du Monde, supostamente criado pelo próprio Diabo, que é notório por fazer com que seus expectadores, em apenas uma exibição, tornem-se insanos homicidas e suicidas.

O VÍDEO PERTURBADOR DO MICKEY: vídeo que circula na internet, do qual acredita-se existirem apenas fragmentos, mas que, se assistido por inteiro, supostamente leva as pessoas à depressão e ao suicídio.

EXTRA 3: Para ler o conto "O Grande Silêncio", também do Ted Chiang, clique aqui.

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